A premência do passaporte do produto têxtil
T83 - Maio 23

Carla Joana Silva

Diretora do Departamento de Química e Biotecnologia do CITEVE
A

quecimento global, escassez de recursos, sustentabilidade… são palavras que ouvimos diariamente nos mais diversos espaços e meios, procurando consciencializar os cidadãos para a urgência de impor limites ao consumo desenfreado e de encontrar as soluções mais sustentáveis para as nossas compras, indispensáveis ou nem tanto.

Mas como saber qual a opção mais sustentável para o que procuro? O que devo privilegiar no momento de compra de uma simples t-shirt, para saber que estou a fazer a opção mais correta para o planeta? Deverei focar-me apenas na composição? E quão sustentável é o algodão? Depende da sua origem e práticas de cultivo ou a proveniência é indiferente? E a cor? Se for preto é pior? E poderei ter duas t-shirts iguais, com a mesma composição, tamanho e cor, mas com impactos ambientais que podem ser diferentes (por exemplo, por terem sido tingidas e acabadas em equipamentos obsoletos que consomem muito mais água e energia ou por terem tido necessidade de um processo de retingimento, infelizmente uma prática recorrente para cumprimento dos cadernos de encargos)?

Facilmente se percebe que não existem verdades absolutas e muito menos fórmulas lineares que permitam uma metodologia clara e isenta para o cálculo da pegada ambiental e social de um determinado produto. Por este motivo, e pela urgência da temática, tem-se discutido nos últimos meses o estabelecimento do DPP (do inglês, digital product passaport), ou seja, o passaporte digital do produto. 

Como resultado da aprovação, em março de 2022, da COM (2022) 142, regulamento do Parlamento Europeu que pretende definir os requisitos de conceção ecológica dos produtos sustentáveis e que revoga a anterior Diretiva 2009/125/CE, tornou-se urgente o desenvolvimento de iniciativas que permitam acompanhar todo o ciclo de vida do produto, minimizando desperdícios e mantendo os materiais em uso pelo maior tempo possível, através da promoção da circularidade e do consumo sustentável. Dentro das iniciativas surge então o passaporte digital do produto, que se pretende implementar numa primeira fase (até 2026), em três tipologias de produtos: vestuário, baterias e produtos eletrónicos. 

Desenvolver e testar uma metodologia inovadora para o passaporte digital do produto têxtil, que permitirá cumprir com os desafios impostos, é um dos objetivos do be@t (https://bioeconomy-at-textiles.com), no âmbito da Iniciativa 8. O projeto be@t é apoiado pelo PRR – Plano de Recuperação e Resiliência e os Fundos Europeus Next Generation EU, sendo um grande projeto nacional de bioeconomia na têxtil, que promete mudar o paradigma da Indústria Têxtil e do Vestuário (ITV) nacional e que foi apresentado publicamente no dia 11 de maio, no Terminal de Cruzeiros do Porto de Leixões.

Esta metodologia inovadora para o passaporte digital do produto têxtil foi desenvolvida numa primeira instância no âmbito do PPS1 do projeto mobilizador STVgoDIGITAL: Digitalização da cadeia de valor do Setor Têxtil e Vestuário (http://www.stvgodigital.pt/), um projeto estruturante do Cluster Têxtil: Tecnologia e Moda. 

Este PPS visou o desenvolvimento de uma solução inovadora de um produto têxtil ampliado com a sua identidade (ID do produto), orientado para o sector do vestuário e para o sector têxtil-lar, para que este seja transparente, rastreável e circular. O sistema desenvolvido possui indicadores de desempenho ambiental, de circularidade, e económicos e sociais, que permitem caracterizar e classificar o nível de sustentabilidade/circularidade dos produtos têxteis. Reúne informação técnica completa sobre os recursos e impactos associados, os processos produtivos e as empresas envolvidas, considerando toda a cadeia de fornecimento e a classificação em termos do nível de sustentabilidade/circularidade, com um indicador integrador que permita a categorização de produtos. 

Foi também desenvolvida uma plataforma agregadora que garante a interoperabilidade dos sistemas de informação, mecanismos de proteção e salvaguarda da integridade e fiabilidade de dados e ainda a rastreabilidade dos processos produtivos, estrutura da cadeia de fornecimento e ciclos de utilização. Acrescem ainda diversos sistemas de identificação física do produto que garantam a sua integridade durante os processos produtivos e durante a manutenção e limpeza doméstica, e que não sejam descartáveis no produto final, assegurando assim a ligação entre o elemento físico e a sua componente de dados digitais. 

Na iniciativa 8 do projeto be@t pretende-se colmatar algumas limitações do sistema desenvolvido anteriormente, bem como demonstrar em larga escala a aplicabilidade do sistema desenvolvido no PPS1 do projeto mobilizador STVgoDIGITAL, através de cadeias de fornecimento internacionais. Para isto, o trabalho colaborativo está a ser validado com a ZEITREEL (anteriormente SONAE FASHION), aplicando este sistema a duas marcas nacionais, que possuem cadeias de abastecimento internacionais complexas e outras empresas nacionais com cadeias de fornecimento distintas, de forma a validar a resposta do sistema desenvolvido a todas as necessidades e requisitos inerentes ao funcionamento das cadeias de abastecimento em questão. 

Em resumo, o CITEVE tem explorado diversas abordagens inovadoras para o passaporte digital do produto, de modo a promover a rastreabilidade e a transparência em toda a cadeia de valor, bem como disponibilizar dados relativos ao uso e ao impacto ambiental, social e económico de um determinado produto têxtil. Assim, não restam dúvidas que o DPP irá incentivar o consumo responsável e a transição para uma economia circular, fatores cruciais para a sustentabilidade da indústria têxtil. 

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