“Private Label”, uma invenção da ITV portuguesa difícil de imitar
T64 - Julho/Agosto 2021

Paulo Vaz

Administrador da AEP e Consultor ATP
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“private label”, na sua versão mais completa e complexa, é uma invenção da indústria têxtil e vestuário portuguesa, tendo no subsector das malhas o melhor exemplo da construção de um modelo de negócio dinâmico, que garantiu, na última década, não apenas a sobrevivência desta fileira produtiva, mas a transformou num caso de sucesso global.

Em mais de 30 anos de carreira profissional dedicado ao sector têxtil e moda, em empresas e como quadro e dirigente associativo, tive o privilégio de testemunhar e até participar na mudança que a indústria realizou ao longo das últimas décadas.

O doutoramento em Design Moda que conclui na Universidade do Minho foi a oportunidade para condensar e sistematizar todos os ensinamentos entretanto recolhidos e a experiência adquirida no sector. Assim, partindo do fenómeno das empresas de malhas do concelho de Barcelos como base de estudo, facilmente se pode extrapolar para toda a fileira, que funciona hoje como um “cluster” organizado e sinérgico, aproveitando as vantagens comparativas das complementaridades e da intensidade das interações entre as empresas e instituições.

Durante longas décadas o sector em Portugal afirmou-se e desenvolveu-se assente essencialmente nas vantagens do baixo custo produtivo, na mão-de-obra abundante e na proteção que o Acordo Multifibras (AMF) oferecia. Este modelo permitiu o crescimento acelerado da ITV portuguesa, sobretudo os subsectores da malha e da confeção a partir do início dos anos 80, sempre jogando no argumento do preço, atraindo os compradores das marcas e do grande retalho de toda a Europa e dos Estados Unidos. 

Em 1995 tudo mudou com o fim do Acordo Multifibras, que permitiu a criação da “OMC – Organização Mundial do Comércio”, estabelecendo-se um período de desmantelamento de dez anos, em que Portugal conseguiu que as categorias mais sensíveis ficassem para a última fase. Tudo isto não evitou o brutal impacto da mudança: a entrada da China na OMC, a invasão dos mercados de produtos a preços cada vez mais baixo e o evidente desrespeito daquele país pelos mais elementares princípios do livre e justo comércio internacional. 

A têxtil portuguesa primeiro reagiu em negação e depois em sobressalto procurou reagir, conseguindo-se um período suplementar de transição até 2007, tempo precioso para as empresas mais capazes se reestruturarem e reinventarem o respetivo modelo de negócio, de modo a resistirem à concorrência avassaladora da Ásia. Nem todas conseguiram, mas muitas puderam fazê-lo e estão aí para contar a história, sendo que a mudança, hoje, é simples de sintetizar: passaram da concorrência do preço para a competição pelo valor, passaram de passivos tomadores de encomendas para ativos vendedores de soluções orientados ao cliente, e, finalmente, alinharam as estratégias individuais com as políticas públicas, criando um contexto propício à inovação, à internacionalização e à capacitação do seu capital humano.

Um ecossistema de sucesso

Assim se forjou aquilo que é hoje o ecossistema que o “private label” da ITV portuguesa apresenta como único: um “cluster” estruturado, predominantemente localizado no litoral Norte do país, em que a fileira têxtil e vestuário se acha completa, atualizada tecnologicamente, e em que mais do que fazer valer as suas complementaridades propicia uma interação intensa e sinérgica entre os seus “stakeholders”, permitindo oferecer aos clientes internacionais um “package” de serviços de valor, onde se encaixam produtos industriais, desenvolvimento de materiais, inovação tecnológica, I&D, design, logística avançada e modelos de negócios que se destacam pela flexibilidade, rapidez, criatividade e antecipação. Tudo isto ainda para mais enquadrado por um sistema científico e tecnológico, composto pelas universidades e centros tecnológicos, de formação e “think tanks”, que permitem uma eficaz transferência de conhecimento, especialmente aquele que é útil para resolver problemas às empresas e conquistar mercados.

Esta fórmula parece, em teoria, fácil de imitar, mas, de facto, torna-se praticamente impossível replicar um ecossistema tão equilibrado, onde todos os componentes se encontram alinhados para permitirem não apenas a sua existência, mas a capacidade regenerativa e de adaptação, capacitando-o para vencerem uma crise e outra a seguir, por mais difíceis que sejam, por mais exigentes que se apresentem os desafios.

E o futuro?

Mas aquilo que permitiu ao sector têxtil e vestuário prevalecer nas últimas décadas, mudando o seu perfil de especialização, adaptando-se à inconstância e incerteza dos mercados, encontrando novos elementos de diferenciação, ou seja, os “drives” clássicos da inovação, da criatividade e do serviço, podem não ser bastantes para o que nos aguarda no ciclo que se seguirá à pandemia. 

A indústria da moda já enfrentava dificuldades, especialmente nos países mais desenvolvidos, com o mercado de consumo a alterar-se radicalmente por força da emergência de consumidores mais jovens, mais informados e inspirados pelos valores da sustentabilidade e responsabilidade social. Esta tendência possivelmente será adensada nos anos mais próximos, tal como a digitalização em toda a cadeia de valor, da indústria à comercialização, da automação à rastreabilidade dos produtos e processos, à massificação do comércio eletrónico, tudo fortemente catalisado pela circunstância pandemia e seus impactos, e que perdurará depois dela.

O que aí virá não será necessariamente negativo para a indústria têxtil e vestuário portuguesa, que tem vantagens comparativas na inovação e na sustentabilidade, num quadro de reindustrialização na Europa, de modo a tornar mais próxima a produção do consumo, reduzindo os impactos ambientais e a dependência das cadeias de fornecimento longas. Desta vez há que ser proativo e não reativo, pois estamos, pela primeira vez, em muitos domínios nesta indústria, como “trendsetters” e não como simples “followers”, como sucedeu no passado. Há que procurar sobretudo as margens, muito mais que crescer nos indicadores, incluindo o emprego ou exportações, pois será na geração e partilha do valor que se estabelecerá a solidez da indústria até final de 2030.

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