As camisas do meu pai
T30 Março 2018

Rui Zink

Escritor
O

meu pai tinha muito bom gosto para roupa. Tradução: eu achava que ele tinha bom gosto para roupa. Tradução da tradução: tínhamos o mesmo gosto para roupa. E, curiosamente, o mesmo corpo. Quer dizer, não exactamente o mesmo corpo – ele tinha o dele e eu o meu – mas corpos com o mesmo formato. É preciso dizer mais? As camisas dele caiam-me que nem uma maravilha! Já os casacos, só de quando em quando. A partir de certa altura (digo isto com vergonha) passaram a ficar-me curtos nos braços e estreitos na barriga. Mas não muito.

Obviamente, só comecei a partilhar quando nos tornámos pares: não mais um papá e seu filhote, antes dois adultos tendo em comum uma empresa filial.

Nunca tive uma discussão com o meu pai. Ele, para todos os efeitos, tinha-me dado aquilo que agora parece só os árbitros dão aos clubes. É pena. Talvez isso explique o estado da nossa juventude. Pouca gente sabe, mas as crianças também precisam de colinho. Estou a desviar-me do assunto? É normal, estou a ficar parecido com o meu pai. É a sina de todos os filhos, aliás: quando o pai já cá não está, é quando ele mais parece estar. É quando passou, definitivamente, a fazer parte de nós.

Havia contudo um assunto que nos punha a ferver: as camisas dele. Eu adorava surripiá-las, a ele tirava-o do sério. Aos casacos eu também os achava giros (e caíam-me bem, caramba), mas eu ainda não era muito de casacos. Agora as camisas! Meu Deus, o gosto extraordinário – extraordinaire, é mais forte em francês – do homem para as camisas! Só que ele era cioso: eram suas e chateava-o que, de cada vez que o visitava, eu rapinasse os cabides. Em desespero de causa, volta e meia o meu pai oferecia-me camisas. Só que nunca iguais às dele. Suspeito que, se visse numa loja uma camisa de que gostava, ele não resistia a ficar com ela. Só que eu das que ele me comprava também não gostava O meu pai defendia-se: «Mas as que eu compro para ti são mais caras que as que eu compro para mim!» Até acredito. Mas não resultava. Lamento, pai, era mesmo das tuas camisas que eu gostava. E a pergunta urge: porquê?

A explicação, suspeito, é simples. Quando comprava para si próprio, o meu pai só se preocupava com o conforto, quer físico quer visual. Já quando comprava para mim, cometia um erro capital: comprava em função do preço (o mais caro, para o seu rico filho) e do que ele julgava ser o meu gosto.

(Um bocadinho insultuoso, pai, pensando bem).

Enfim. O meu pai morreu há doze anos e está cá mais do que nunca. Na última conversa que tivemos, já no hospital, rimos bastante. E ele deu-me o seu relógio, não só para mo dar, também porque «não confiava no pessoal». Obviamente, não levei muito tempo a perder o relógio. Haverá uma explicação qualquer profunda para isso. Mas guardei as camisas dele – e alguns casacos. Tenho a certeza de que, se eu cumprir a promessa de fazer mais exercício, ainda me vão voltar a servir.

 

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