T4 dezembro 2015

Podem fazer-se fibras novas com roupas velhas?

É sempre possível reciclar. Os resíduos industriais já há muito tempo que são reciclados em matéria-prima usada no fabrico de meias, tapetes ou produtos de isolamento. Mas no que toca ao pós-consumo ainda há um caminho a percorrer. Falta montar um mecanismo de recolha de roupas usadas e organizar uma indústria capaz de separar as que podem ter uma segunda vida, no corpo de uma pessoa carenciada, das que vão ser transformadas em fibras novas

Jorge Fiel

A culpa é do despertar da consciência ecológica. O verde é a nova cor da moda, para todas as estações, seja verão ou inverno, chova ou faça sol. Não pára de engrossar o contingente de consumidores que exigem roupas verdes, mesmo que a olho nu elas aparentem ser vermelhas, azuis ou pretas. E como é natural, as grandes cadeias mundiais de retalho começaram a fazer-lhes a vontade. O cliente tem sempre razão.

O pontapé de saída foi dado pela Patagonia, em 2011, ao publicar, no dia da Black Friday, um anúncio de página no New York Times intitulado “Don’t buy this jacket”, em que pormenorizava os litros de água, as emissões de carbono e o lixo que a produção daquele casaco acarretava.

A marca californiana, fundada nos anos 70 por um montanhista, foi ainda mais longe, disponibilizando-se para consertar de graça as roupas velhas dos clientes e, ainda, ao ajudá-los a vendê-las em segunda mão, quando eles se quiserem desfazer delas. O fabuloso em tudo isto é que a Patagonia conseguiu aumentar as vendas com uma campanha anti-consumista em que apela aos consumidores para não comprarem uma peça de roupa antes de terem a certeza de que precisam mesmo dela.

A H&M também já está a fazer surf em cima da onda verde que está varrer o mercado de vestuário. No âmbito de uma campanha intitulada “Don’t let the fashion go to waste”,  a segunda maior cadeia mundial de pronto-a-vestir lançou uma linha de jeans parcialmente confecionados com fibras resultantes da reciclagem de 14 mil toneladas de jeans usadas que recolheu nas suas lojas.

As preocupações ambientais dos consumidores que exigem roupas verdes são a reação natural ao triunfo da fast fashion e das fast clothes, a uma espiral de consumo que alimenta perigosamente o crescimento exponencial das emissões de CO2 responsáveis pelo aquecimento global.

Quando uma peça de roupa na Primark custa menos que um menu no McDonald’s, isso significa que pode ser usada e deitada fora sem pensarmos duas vezes, tão barata ela foi.  “Numa sociedade rica, roupa e têxteis são comprados mais por moda do que por função ou necessidade, o que tem como consequência serem substituídos muito antes do fim do ciclo natural de vida”, analisa um estudo da University of Cambridge Institute of Manufacturing, calculando que cada inglês deita fora 30 quilos de têxteis e vestuário por ano.

A reciclagem é a resposta certa a uma equação que tem como principais componentes o consumo desmesurado de vestuário num planeta que começa a ficar exaurido de recursos. O futuro do vestuário passa pela crescente reconversão de roupas velhas em fibras novas. Mas será que já existe tecnologia capaz de operar o milagre da transformação do velho em novo?

“É sempre possível reciclar”, responde José Morgado, engenheiro têxtil pela UMinho, com  um mestrado na Técnica de Lisboa, 46 anos de vida e 20 de CITEVE, onde é responsável  pelo Departamento de Engenharia e Tecnologia.

Maria José Carvalho
“Há muita fibra desperdiçada porque o processo de reciclagem de roupa velha é trabalhoso, caro e moroso”

Morgado acrescenta que a reciclagem de resíduos industriais têxteis não é exatamente uma coisa nova. E dá exemplos. Os tapetes de farrapos são feitos a partir de material reciclado já há longas décadas. Em termos industriais, há empresas, como a Recutex (Famalicão), especializadas em preparar resíduos para a reciclagem em novos fios, e outras, como a Jomafil (Covilhã) que usam o desperdício dos outros como matéria prima para produzir pastas de enchimento de colchões ou material de isolamento para a construção civil e indústria automóvel.

E, não digam por favor nada a ninguém, mas não é impossível que a péssima reputação da meia branca se deva no seu essencial a uma bem sucedida campanha dos fabricantes de peúgas, que usam frequentemente na sua produção restos de tecidos de várias cores. Ao fim e ao cabo, pode-se sempre passar tudo para o preto…

Como qualquer industrial de meias poderá testemunhar, a reciclagem de restos de algodão resultantes do processo industrial é uma coisa antiga. Mais recente, mas com já uns bons 20 anos de vida, é a reciclagem de fibras artificiais como o poliéster ou a poliamida.

A Têxteis Penedo (Guimarães) faz cobertores com poliéster reciclado, recorrendo a um processo idêntico ao usado no fabrico das camisolas da Selecção Nacional a partir de garrafas de plástico. Cobertores e camisolas mais verdes não pode haver pois esta reciclagem representa uma economia de 70% relativamente à fibra virgem.

É sempre possível reciclar, mas é muito mais fácil reciclar resíduos industriais do que roupas velhas. “Há dois fluxos de resíduos têxteis, o industrial e o do pós consumo. Nesta última vertente, há muita fibra que é desperdiçada e vai para o aterro, não só por não haver um mecanismo montado de recolha mas também porque o processo de reciclagem  é mais trabalhoso, caro e moroso”, explica Maria José Carvalho, engenheira têxtil pela U Minho, 46 anos de vida e 21 de CITEVE, onde é a responsável pelo Departamento de Produção Sustentável.

Há ecopontos azuis para o papel, amarelos para o plástico e verdes para o vidro, mas ainda não há um branco ou cor-de-rosa para pormos a roupa que já não usamos. Por isso há toneladas de camisolas, calças e t-shirts que vão parar ao lixo indiferenciado. Lavoisier tinha razão, mas no que concerne à ITV ela é apenas parcial: nada se perde, nada se cria, mas ainda não se transforma tudo.

Há exemplos luminosos, como a da Moinho de Chuva (Viseu) que transforma em papel de escrita, para caixas, embalagens, convites de casamento, etc, resíduos têxteis de algodão ou pós-consumo, numa produção verde, apesar de multicolor, que resume num slogan atraente: Old jeans new paper.

Mas, a montante, não existe ainda um sistema nacional de recolha de roupa (em concelhos como Famalicão e Barreiro, há contentores para vestuário velho, mas apenas destinado a ter uma segunda vida no corpo de pessoas carenciadas), nem há, a jusante, uma indústria organizada para separar as peças que podem voltar a ser usadas em segunda mão e preparar as outras para a reciclagem.

José Morgado
“Há tecnologias que identificam a cor. Noutras fases do processo há ciência de base, só falta agregá-la”

“No pós-consumo, a reciclagem exige um processo muito complexo. Logo para começar, o hábito de arrancarmos as etiquetas dificulta logo a identificação das fibras de um tecido. Depois é preciso separar por cores, tirar botões e fechos éclair, e cortar tudo em pedaços pequenos”, explica Maria José.

Neste momento, todo este trabalho tem de ser feito manualmente, por pessoas altamente especializadas, o que encarece o processo e o torna pouco atrativo.  Mas não vai ser sempre assim. Há que ter esperança, pois as coisas podem mudar muito rapidamente. “Já há tecnologias que identificam a cor. E mesmo para as outras fases do processo, há ciência de base, só falta agregá-la”, garante Morgado.

Há, no entanto, outras espinhas a atrapalhar a reciclagem, o mantra do novo deus que é a economia circular, onde a roupa usada está sempre a voltar a entrar no circuito.  A moda slimfit criou uma nova dificuldade: a separação da lycra do algodão. As misturas de fibras cada vez mais complexas são um problema suplementar para resolver. E há casos em que se se quer mesmo ser verde há que pensar duas vezes antes de reciclar.

“Para destruir o algodão e deixar ficar o poliéster usa-se ácido sulfúrico, num processo químico muito agressivo com custos ambientais não negligenciáveis”, avisa Maria José.

Na reciclagem, não está apenas em jogo a questão ambiental, mas também um aspeto preventivo, principalmente para países como Portugal, que tem uma indústria têxtil e de vestuário poderosa, mas está dependente do exterior (Paquistão, India, Turquia, China, Egito …) para o abastecimento de matéria-prima.

O cultivo do algodão implica o uso de enormes quantidades de água, o abuso de pesticidas e cansa as terras. Acresce que a esmagadora maioria dos campos de algodão estão situados em países em vias de desenvolvimento, em terrenos que podem ser usados para produzir alimentos.…

“A quantidade disponível de fibras naturais não é inesgotável. E se um dia os países produtores resolverem parar a exportação de algodão e decidirem que o que têm fica uso exclusivo da sua própria indústria?” interroga José Morgado.

Por esta e todas as outras razões, é urgente reciclar. E ter esperança, como Maria José Carvalho: “Há um potencial imenso. Ainda não está montado um circuito específico e eficaz de recolha de roupa usada. E falta o suporte legal. Mas mal se sinta que há  negócio, aparece logo uma cadeia de fornecimento”.

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