T60 - Janeiro 2020

Os grandes grupos já estão a relocalizar para a Europa?

A pandemia serviu de alerta para a excessiva dependência das marcas europeias em relação aos fornecedores asiáticos, mas também as questões da sustentabilidade e as tendências de consumo mais ético, responsável e moderado apontam para um abastecimento de proximidade. E enquanto os discursos oficiais falam de uma estratégia de reindustrialização, a juntar às desvantagens de comprar no far east as grandes marcas ponderam também as garantias de qualidade, produção responsável e rapidez de entrega, que permite séries mais curtas. Mas será que que já estão a fazer regressar algumas encomendas à Europa?

António Moreira Gonçalves

A crise pandémica lançou para a ribalta a questão da produção de proximidade, não só pela excessiva dependência do abastecimento asiático mas também como resposta às exigências de um consumo mais ético e sustentável. Um movimento que teve uma brusca aceleração e para o qual a ITV portuguesa mostrou estar preparada e na linha da frente. Algumas  empresas já vão notando o movimento de mudança.

“Nota-se que há um interesse da parte dos clientes em geral de produzirem mais na Europa, temos sido contactados por vários clientes novos, que mesmo com o distanciamento pedem para reunir por zoom ou por Skype”, conta António Cunha, sales manager da Orfama. A empresa, especializada em vestuário, nota sobretudo um aumento nos contactos e não tanto nas encomendas, porque há ainda muita incerteza em relação ao primeiro semestre de 2020. No entanto, António Cunha não tem dúvidas que se assiste a uma mudança na postura dos compradores. “Eram clientes que compravam na Ásia, mas que agora começam a pensar de uma maneira diferente, valorizam a proximidade, a facilidade de comunicar, de realizar o transporte”, refere.

Rita Ribeiro, Business Manager da TMG Textiles, não tem dúvidas em registar a mesma tendência. “Os nossos principais clientes, que estrategicamente já tinham uma boa fatia na Europa, nota-se claramente que estão a querer fazê-la crescer”, afirma, sem contudo deixar de apontar um senão: “todos os clientes trabalham com orçamentos, e neste momento esses budgets estão mais limitados, ou seja, proporcionalmente compram mais na Europa, mas quantidades mais curtas, pelo menos por enquanto”, esclarece.

Na cadeia de fornecimento para a indústria de vestuário, mas no sector das lãs, António Teixeira, administrador da Penteadora, prefere ver o futuro com cautela: “Ainda é cedo para apurar essas tendências, porque a memória está muito fresca da pandemia e o mercado da moda ainda está em baixo”, no entanto, refere que a pandemia fez a ITV portuguesa afirmar-se pela sua resiliência: “Foi importante para Portugal manter-se sempre disponível, foi determinante até para algumas grandes marcas continuarem connosco”.

Já Ricardo Silva, administrador da Tintex, acrescenta ainda outro fator que vem beneficiar a indústria têxtil portuguesa: a emergência do digital.  “O crescimento do comércio online é uma oportunidade porque significa lotes mais pequenos, mais repetições e com prazos mais curtos, algo a que a indústria portuguesa sabe dar resposta”, explica o responsável da empresa de Vila Nova de Cerveira especializada em malhas.

António Cunha
“Os clientes começam a valorizar a proximidade, a facilidade de comunicar e de transporte”

Quem também não tem dúvidas é Virgínia Abreu, administradora da têxtil Crispim Abreu, que identifica uma tendência que poderá beneficiar os têxteis portugueses: “No início da pandemia deixaram de colocar produção fora da Europa. Sinto que agora será para continuar, receio até que dentro em pouco tempo o sector comece a ter problemas na capacidade de resposta, porque houve muitas pequenas confeções que fecharam”, adianta a empresária.

Nos têxteis-lar, os grupos JF Almeida e MoreTextile fazem nota do mesmo percurso: mais encomendas, ainda que com quantidades menores e divididas em muitas re-orders. “Efectivamente sentimos os clientes a comprar mais na JF Almeida, e vejo isso como um reflexo de que estão a comprar mais em Portugal e na Europa”, afirma Joaquim Almeida, fundador da JF Almeida. “Como há mais incerteza em relação ao futuro próximo, tendem a dividir uma encomenda em várias e isso apenas é possível com os fornecedores mais próximos, não com aqueles que estão a semanas e meses de barco”, acrescenta Artur Soutinho, CEO do grupo MoreTextile.

Com os mercados europeus a fecharem-se num novo confinamento, as expectativas colocam-se agora sobre a reabertura dos mercados, quando as vacinas começarem a ter um efeito mais palpável. Esse período de transição é visto como uma janela de oportunidade para a indústria têxtil portuguesa fazer valer os seus argumentos.

“Neste momento, nenhuma marca está preparada para fazer encomendas com a antecedência necessária para comprar no far east. Quando a pressão passar, a primeira oportunidade será para quem cá está e saiba dar uma resposta com a máxima rapidez, depois veremos se o Made in Europe entra no ADN destas marcas”, antecipa Rita Ribeiro. “Portugal evidencia-se no quick response, mas falta saber se a indústria vai ter a mesma dimensão que teve até agora e a mesma capacidade produtiva, porque com o tempo vai perdendo músculo”, alerta António Cunha.

“Muitos clientes descobriram em Portugal a solução: não compram quantidades tão grandes, fazem o stock em nossa casa e encontram mais qualidade e serviço. Em produtos mais básicos as encomendas voltarão eventualmente à Ásia, mas no resto do catálogo a Europa continuará a ser a escolha”, antevê Joaquim Almeida. “Se a diferença de preço for demasiado grande, voltam a comprar na Ásia, mas há aqui hábitos que se estabelecem, relações que se constroem e depois só com uma diferença significativa é que os compradores voltam a mudar”, prevê Artur Soutinho.

Patrícia Ferreira
“O preço é preponderante, mas com o speed-to-market e a sustentabilidade, a Europa vai-se manter”

Para além da janela de oportunidade pós-pandemia, a Covid-19 acelerou também tendências já existentes. Os consumidores estão hoje mais cientes do impacto social e ambiental da produção de moda, dos verdadeiros custos da produção na Asia e do excessivo desperdício em todos os processos. Uma mudança que leva as marcas a adotarem novas exigências, que vão de encontro a um posicionamento já longamente assumido pela ITV portuguesa.

“Acredito que o preço é um fator preponderante na tomada de decisão, mas com as alterações que temos assistido e o peso que estes grandes grupos têm dado ao speed-to-market, à sustentabilidade e à inovação, a passagem para a Europa vai-se manter mas nunca com grandes volumes como no passado, será sempre associada a customização e ao valor acrescentado”, resume Patrícia Ferreira, CEO da Valérius Hub. “Há uma mudança de comportamento nos consumidores, que valorizam mais a sustentabilidade e a responsabilidade social, duas questões que favorecem a indústria europeia”, concorda Artur Soutinho.

Para António Cunha, mesmo que o próximo ciclo venha beneficiar a ITV portuguesa, é preciso que a fileira não abdique da sua estratégia, focada na especialização. “As empresas têm de ser proactivas, seleccionando os clientes que valorizem a qualidade, não importa crescer em volume e depois ficar dependente do preço”, lembra o gestor da Orfama.

Virgínia Abreu deixa ainda um apelo, para que a aposta na qualidade, sustentabilidade e inovação continue: “Esta estratégia vai inevitavelmente levar a um aumento dos preços, mas esta é uma questão a que os governos têm de estar atentos. Para cumprir as normas de qualidade, ambientais e sociais, a Europa tem de pôr um travão aos produtos importados que não cumprem essas regras”, lembra.

No mesmo sentido, António Teixeira, destaca que esta é uma oportunidade única, não só para as empresas, mas também para os decisores políticos: “Os governos que dizem proteger a indústria local e a produção de proximidade, são os mesmos que, a partir do momento em que os transportes começaram a normalizar, dão preferência ao preço. Esta é uma oportunidade única para passar das palavras aos atos”.

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