T61- Fevereiro 2021

Como está a correr o processo de digitalização na ITV?

É uma transformação de longa data da indústria têxtil portuguesa, mas que se viu acelerada ao longo do último ano. A digitalização está hoje presente em todos os elos de ligação da cadeia de fornecimento, desde o desenvolvimento de produto à venda ao público, e num período de crise sanitária, revelou-se até a solução para encurtar as distâncias e manter o contacto com os clientes. As empresas investem continuamente em tecnologias cada vez mais sofisticadas, mas para ser eficaz, a digitalização nos têxteis tem ainda de ultrapassar algumas limitações e tem de ser acompanhada pela capacitação do capital humano

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a digitalização começou pela vida quotidiana, quando deixamos de comprar CD’s e aderimos aos Spotify ou quando começamos a fazer compras e a pagar os impostos online. Hoje tudo passa pelo telemóvel e a indústria não pode passar ao lado disso, é um processo que vai acabar por influenciar todas as tarefas”. A previsão é de Rodrigo Siza Vieira, diretor-geral para Portugal e Espanha da Lectra, uma das gigantes tecnológicas que tem acompanhado o processo de digitalização da produção têxtil.
Muitas vezes apelidada de indústria tradicional, a ITV portuguesa tem-se afastado desse imaginário clássico integrando cada vez mais tecnologia e ferramentas digitais nos seus processos de produção. Uma tendência que é de longa data, mas que hoje se torna imperativa e urgente. “Ainda me lembro quando em 1993 instalámos na Fitecom o primeiro sistema CAD de desenho industrial. Creio que foi o primeiro a ser montado em Portugal. Nas feiras internacionais olhavam para aquilo como uma coisa verdadeiramente surrealista”, conta João Carvalho, CEO da Fitecom.
Hoje, as novas soluções apontam para a digitalização de todos os processos, desde o desenho à modelação, da produção ao retalho, com a afirmação de um conceito de Fábrica Inteligente, assente em maquinaria cada vez mais próxima da robotização. Os novos equipamentos são dotados de sensores, estão em constante ligação à internet e mostram-se cada vez mais autónomos. A modelação é aperfeiçoada através de tecnologias 3D, as reuniões são realizadas através de plataformas como o Zoom ou o Skype, os desfiles são transmitidos em streaming e o comércio transita para o online, tanto em marketplaces como em lojas próprias.
Para a ITV portuguesa, a digitalização é também mais um meio para afirmar as suas apostas competitivas: melhor serviço e mais sustentabilidade. “A digitalização permitirá leadtimes ainda mais curtos, maior diversidade na oferta de produtos e maior capacidade de personalização”, lembra Rodrigo Siza Vieira. “A pandemia acelerou a necessidade da digitalização, tendo por base a sustentabilidade. A utilização de ferramentas para diminuir o número de amostras é uma aposta”, afirma Patrícia Ferreira, CEO da Valérius Hub. “As vantagens futuras em rapidez de resposta justificam o investimento”, acrescenta Bruno Mineiro, administrador da Twintex.
Ao longo do último ano, o isolamento das equipas, o teletrabalho e a interrupção do tráfego internacional levaram as empresas a procurar novas ferramentas.

Patrícia Ferreira
“A pandemia acelerou a necessidade da digitalização. Ferramentas para diminuir amostras são uma aposta”
“Dentro das empresas existiu um progresso enorme, em termos de novos hábitos para trabalhar e reunir remotamente. Há hoje também um maior acesso remoto à informação da fábrica, o que torna os processos mais eficientes. E em termos de comunicação para o mercado e apresentação dos produtos, tudo está a desenvolver-se muito rápido”, destaca Ricardo Silva, CEO da Tintex.
É exatamente no que toca ao contacto com os clientes e na apresentação dos produtos, que muitas empresas registam maiores avanços. “Na Valérius, percebemos que seria muito difícil a venda das coleções sem a presença física. Pensámos então numa solução que iria ajudar a fazer a promoção destas mesmas coleções, o 3D em forma de desfile. O sistema foi muito bem aceite e serviu de base para muitas vendas que foram feitas nessa altura”, relata Patrícia Ferreira. “Apostamos também num sistema de LCA – Life Cycle Assessment que nos permite informar o cliente de toda a traceabilidade do produto desde a origem da rama até que chega às suas mãos, o que permite apurar a pegada ecológica de cada produto”, acrescenta.
“Na Twintex, a digitalização está a ser desenvolvida em diversas vertentes. A primeira foi a apresentação em template digital de acessórios, tecidos, esboços de peças a desenvolver, etc. O que permite ao cliente uma pré-visualização muito próxima do resultado real e conduz a poupanças evidentes de tempo, dinheiro e pegada ecológica”, relata o administrador da Twintex, que tem em mãos um projeto ainda mais recente. “Estamos a dar passos concretos no sentido do desenvolvimento de modelação em 3D. A fase embrionária em que nos encontramos já demostrou que a complexidade do nosso leque de produtos, nomeadamente o blazer, apresenta desafios muito interessantes até chegarmos ao efetivo desenvolvimento de moldes, mas também demonstrou que o potencial é enorme”, esclarece.
Na Fitecom, o projeto de digitalização foi também acelerado, sobretudo no que toca ao contacto com os clientes. “Logo em abril, montamos uma sala para apresentações digitais, com um sistema de digitalização e de monotorização das peças. Na altura a reação das pessoas foi ainda conservadora, hoje já há uma adesão maior”, relata João Carvalho.
Também na NGS Malhas são dados novos passos no sentido da digitalização. “Estamos a construir um site onde apresentamos todas as qualidades de malhas do nosso catálogo, com um espaço aberto ao público e outro reservado para contactos profissionais. Para o setor têxtil estas tecnologias estão a começar a apresentar resultados, mas ainda é apenas o início”, comenta o CEO Nuno Cunha Silva.
Bruno Mineiro
“Estamos a dar passos concretos para a modelação em 3D. Apresenta desafios, mas o potencial é enorme”

A par da aceleração da transição digital, o confinamento expôs também as suas principais limitações. “Com as lojas fechadas, percebeu-se que o digital é uma vantagem competitiva, mas também não é uma solução instantânea, está longe de replicar o negócio convencional. Exemplo disso são as feiras, onde as alternativas digitais ainda não são suficientemente atrativas”, salienta António Falcão, CEO do Grupo Falcão, que atua no mercado como produtor de fios e de meias e collants.
A grande limitação parece ser ainda o toque. “Em termos visuais, com a tecnologia atual já se fazem coisas muito bem feitas. Ainda não existem soluções é em termos de tacto, o que é importantíssimo nos têxteis e é totalmente subjetivo. Por isso é que as apresentações digitais funcionam bem para produtos que os clientes já conhecem, mas não para introduzir uma novidade”, explica João Ferreira. “O toque é sempre insubstituível e o digital não permite absorver esse tipo de conhecimento”, acrescenta António Falcão.
Por outro lado, a digitalização exige equipas com formação especializada e uma integração que abranja toda a cadeia produtiva. “Acredito que no futuro o 3D se vai tornar quase obrigatório em alguns setores da confeção, mas por enquanto ainda está longe de ser uma tecnologia massificada. Nas malhas estamos também a estudar novas tecnologias, mas o avanço nesta área ainda não está tão adiantado. E fazer a transição para o digital de todo o desenvolvimento têxtil ainda vai ser um processo demorado”, antecipa o CEO da Tintex, Ricardo Silva.
Para Rodrigo Siza Vieira, a ITV portuguesa tem até demonstrado bons níveis de maturidade digital. “Não digo que estamos demasiado atrasados, mas também não posso dizer que estamos no pelotão da frente. Em termos de processos internos há muitos bons exemplos, mas falta ainda uma maior interação entre diferentes agentes na cadeia de valor”. Para o responsável da Lectra, só nessa fase é que se conseguirá perceber o verdadeiro potencial das novas plataformas: “A pandemia teve um papel acelerador, mas não é algo automático, não é só a questão da tecnologia, há também o capital humano e a capacidade de gestão da mudança. O que falta – mas existem já bons exemplos a seguir – é o trabalho colaborativo, entre empresas e entre equipas. E essa transformação vai demorar anos”, conclui.

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