Jorge Fiel
Como poderemos valorizar as dez toneladas de aparas de couro que todos os meses resultam da nossa operação industrial? Esta interrogação já estava alojada nas cabeças dos gestores e quadros da ERT desde meados da última década, ainda a intervenção da troika estava fresca nas nossas memórias.
Até que em 2017, o CITEVE (mais o CeNTI, mais o CTIC, centro tecnológico do couro) entrou a bordo da equipa que buscava uma resposta a esta questão. E o projeto de investigação e desenvolvimento (i&d) arrancou há cinco anos, no âmbito do Texboost, um dos pilares do estabelecimento de simbioses entre indústria e entidades do sector científico, no sentido da sustentabilidade da ITV e de uma economia circular.
Em 2020, o projeto terminou com uma resposta positiva à pergunta – foi achado um processo de converter os desperdícios de couro em revestimentos têxteis para a fabricação de componentes para a indústria automóvel.
O caminho não foi fácil – raramente o é quando vale mesmo a pena. A primeira tentativa, que tinha como ponto de partida a trituração mecânica de resíduos de couro, não proporcionou um revestimento uniforme.
Com a colaboração de Mónica Gonçalves, a designer da ERT, a equipa de i&d testou o aproveitamento de soluções para vestuário deste primeiro resultado da sua investigação. Não ficaram satisfeitos. Em termos visuais, a coisa não funcionava.
Mas não desistiram. Os membros do consórcio continuaram a busca de um processo que proporciona um coating uniforme. Até que, finalmente, tiveram o seu momento Eureka no método de hidrólise, que consiste na utilização de um químico que extrai a proteína do couro, um processo sustentável, de base biológica, que recorre a polímeros reciclados para fazer o reverbamento.
“Foi um longo caminho, durante o qual fomos otimizando soluções, introduzindo melhorias e aperfeiçoando o processo, em que foi usada uma grande percentagem de produtos reciclados, com um menor impacto ambiental do que o couro natural, suscetível por isso de receber a certificação GRS-Global Recycled Standard”, explica Augusta Silva, a engenheira têxtil formada na Universidade do Minho que é a gestora de Inovação, Estamparia e Coating do CITEVE.
Em 2020, este projeto Texboost, desenvolvido em parceria por um consórcio liderado por CITEVE e ERT, encerrava com um final feliz. Mas ainda havia (e há…) terreno a desbravar.
A ERT adquiriu os direitos industriais da exploração do novo produto, que batizou Phoenix (alusão ao renascimento do desperdício), apresentou o pedido de patente (que foi aceite) e continuou o seu desenvolvimento, com fundos próprios e novos parceiros industriais.
“Tínhamos pela frente vetores de desenvolvimento do nosso trabalho. Na primeira fase, estudámos a industrialização do processo, recolhendo informações sobre os equipamentos de que necessitava e os consumos de água e energia que implicava. Depois fizemos um ensaio piloto com os nossos parceiros tendo como base os requisitos dos principais fabricantes de automóveis europeus, que fomos sempre auscultando e mantendo a par de todos os desenvolvimentos do nosso trabalho”, conta David Macário, um engenheiro eletrónico formado pela Universidade de Aveiro que desde há dois anos é o diretor de Inovação da ERT, após seis anos com idênticas funções na Heliotêxtil.
Construtores como a Mercedes, BMW ou grupo VW, já manifestaram interesse no novo e inovador produto – e seguem atentamente o processo, ao ponto do couro reciclado já estar a ser testado num concept car.
Apesar de ter conseguido operar com sucesso a migração do laboratório para a fábrica, a ERT está agora empenhada em tornar economicamente viável o couro reciclado. “Neste momento, o preço do couro reciclado fica resvés com o da pele. Estamos a fazer a engenharia do produto no sentido de o industrializar o mais barato possível”, afirma o diretor de Inovação da ERT, acrescentando que estão a esforçar-se por baixar o preço, mas não a todo o custo.
Nisto de inovação, as coisas levam o seu tempo. Decorreram três anos entre o cork-a-tex ter sido distinguido em 2019 com o prémio de Novo Produto pela Techtextil e a Têxteis Penedo estar a negociar com as maiores marcas mundiais de calçado desportivo o fornecimento de tecido feito com fio produzido a partir de desperdício de cortiça.
Será que na próxima edição a Techtextil, que abre a 23 de abril de 2024, na Messe Frankfurt, a Deutsche Bahn já estará a testar o couro reciclado Phoenix nos assentos das suas carruagens?