Daniel Bessa
"Políticos já se convenceram que a têxtil tem futuro"
T13 Outubro 2016

Jorge Fiel e Paulo Vaz

Acreditar que a solução está no mercado interno é como viciar-nos numa droga dura e viver num ambiente ilusório onde há vacas que voam - afirma Daniel Bessa, do Conselho Consultivo da ATP

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o programa da Geringonça não há uma medida que ajude a desbloquear o país, afirma Daniel Bessa, membro do Conselho Consultivo da ATP.

Surpreende-o que a ITV antecipe o cenário ouro das exportações fixado para 2020?

Na altura achei provável, embora difícil, que se cumprisse o cenário prata. O cenário ouro parecia-me estar para além das nossas forças. Afinal vai ser atingido – e quatro anos antes! Fica provada a razão das pessoas que me atribuem o defeito de ser pessimista.

A que se deve este desempenho extraordinário?

O crédito maior tem de ir para os empresários ou para as pessoas a quem estes confiaram a direção das suas empresas. O mérito é deles, porque sabiam onde queriam chegar. Não basta a conjuntura ajudar, pois, como dizia Séneca, não há ventos favoráveis para quem não sabe o porto onde quer chegar.

Por as fichas todas na exportação foi a estratégia certa?

Julgar que o mercado interno tem de ser aumentado e que isso pode resolver os nossos males equivale a viciar-nos numa droga dura – aliena-nos, atirando-nos para uma ambiente ilusório, cheio de vacas que voam.  Só uma pessoa que vive fora da realidade pode pensar que um mercado interno que vale duas milésimas da economia mundial, e inteiramente aberto, pode ser a solução para os nossos problemas.

o há margem para crescer no mercado interno?

Já deu o que tinha a dar. Há cinco anos a ITV exportava 65% da produção. Agora está nos 75%. Tem de chegar aos 80% ou 90%. Cá dentro não tem margem para prosperar. O consumo interno não vai crescer. Há projeções demográficas que apontam para que, dentro de 30 anos, Portugal tenha cinco milhões de habitantes.

Os empresários queixam-se dos obstáculos à competitividade…

A minha mãe, uma senhora hoje com 99 anos, tinha um dito: “A quem não pede, Deus não ouve”. Outros, num registo menos religioso, dizem que “quem não chora, não mama”. Chateia-me um bocado ser raro ouvir um empresário português dizer que as coisas estão a correr bem. Até pode dizer que as vendas estão e subir, mas quando se trata de resultados ….

Daniel Bessa
"Não vai ser possível estar nos negócios sem uma presença digital forte"

Essa atitude é um problema cultural?

Tiro o chapéu aos empresários têxteis pelos resultados que têm conseguido, mas esconderem o seu sucesso é um mal um bocado português, uma atitude apenas compreensível e desculpável porque se o mostram, se aparecem de camisa lavada, o Estado e os sindicatos caem-lhe logo em cima (risos). A Geringonça detesta ver alguém com a camisa lavada (mais risos).

As empresas saíram das crises muito descapitalizadas ..

Já estavam descapitalizadas antes. Os níveis muito altos de endividamento das empresas são uma característica do capitalismo português. As nossas empresas trabalham com níveis de endividamento demasiado elevados face aos capitais próprios. E é engraçado porque em muitos casos os financiadores são os próprios empresários, que preferem fazer suprimentos a por capital.

Porquê ?

Há duas razões. A primeira é que o Estado trata melhor os juros que os lucros. Temos um sistema fiscal que desincentiva o aumento dos capitas próprios. A segunda razão é que se a empresa correr mal, o capital próprio é a primeira coisa a ser perdida. Ao fazer suprimentos, o empresário está a proteger o seu património.

A banca delirava em financiar as PT, EDP. CTT e PPP. Está pouco habituada a empresas normais

Como se resolve isso?

Quando estava na Cotec, fizemos um top ten de medidas indispensáveis para tornar o ambiente mais favorável à inovação. Uma delas era que o fisco deixasse de beneficiar o financiamento através de créditos em vez do aumento dos capitais próprios das empresas.

Isso chega?

Não há uma solução única. A dispersão de capital é outra possibilidade, mas os empresários portugueses lidam mal com isso, pois implica abrir a gestão da empresa e um rigor maior nas contas… Acompanhei vários casos de investidores estrangeiros: traziam capitais e acesso a mercados importantes, como o americano ou chinês, em troca de uma participação no capital. Nenhuma dessas negociações acabou em casamento.

O Banco do Fomento ajudava?

Costumo dar uma esmola a um pobre. Muitos amigos dizem-me que faço mal, pois não é dando esmolas que resolvo o problema da pobreza. Têm razão. Mas eu contínuo a ser dado a esmolas, pois vou ajudando a resolver algumas situações. Acredito que o Banco do Fomento possa ajudar umas dezenas de empresas, mas isso não será mais que um pequeno contributo para resolver o problema.

De onde podem vir mais contributos?

Andei metido até ao pescoço na criação de condições de acesso das PME ao mercado de capitais na Euronext Lisbon. Mas para que isso aconteça é preciso que os empresários queiram; e, de novo, servirá a muito poucas empresas.

Ou seja, o problema também está nos empresários?

Estou habituado a dizer o que penso e a viver com as consequências disso. Converso com muitos amigos que têm dinheiro e querem investir em empresas industriais ligadas à exportação. Uma questão crítica é a de quem fica com a maioria. E eu aconselho-os sempre a ficarem maioritários, pois é muito legítimo recear que os minoritários sejam mal tratados.

Paulo Melo lamenta que não haja na banca quem perceba a fundo do setor…

A banca gostava de dar crédito aos particulares para comprarem casa e consumirem; aos promotores imobiliários que não tinham dinheiro nem para o terreno, nem para construção; e ao Estado, adquirindo divida pública. E adorava os chamados setores não transacionáveis. O que a punha em delírio era emprestar dinheiro às PT, EDP, CTT e PPP. Está pouca habituada a lidar com empresas normais.

Voltando à competitividade. Não acha preocupantes os custos da energia?

Na competitividade guio-me pelo Relatório do World Economic Forum (WEF) e efectivamente estamos muito mal no custo da energia. Isso deve-se a estarmos a pagar o investimento nas renováveis e o défice tarifário que foi acumulado nos tempos em que o petróleo subia e, por decisão política, o Governo não deixou que isso se reflectisse no preço da energia, ficando a EDP credora desse diferencial – que agora estamos a pagar.

As leis laborais prejudicam a competitividade?

Olha-se para o Relatório do WEF e as leis laborais estão do lado errado, não ajudam. Nesta matéria tenho dois heróis. João Proença,que, nos tempos da troika, aceitou fazer alterações à legislação, pagando por isso um preço muito elevado  E António Chora que tem ajudado a Autoeuropa a ser uma das unidades mais produtivas da Volkswagen. São duas pessoas corajosas que merecem o meu respeito. O bom momento da têxtil, e de outros setores, prova que mesmo com leis adversas é possível ser competitivo.

O que acha da política de reversões do Governo?

O termo é horrível. Significa voltar para trás, para o ponto de partida. Significa que o problema não existiu, que não se passou nada quando, em 2011, Fernando Teixeira dos Santos olhou para o caixa, viu que estava no fundo e obrigou José Sócrates a cair na real e a pedir ajuda.

Está desiludido com António Costa?

Em junho do ano passado ouvi no rádio do carro António Costa dizer que Portugal era um país bloqueado, pois não tinha encontrado forma de responder aos desafios de uma economia globalizada. Tirei-lhe o chapéu pelo diagnóstico certeiro. O único problema é que do programa da Geringonça não consta uma única medida capaz de ajudar o país a sair desse bloqueio – e num ano de governo não dei conta de nenhuma acção nesse sentido.

Como se desbloqueia o país?

Exportando. A aposta do Governo no mercado interno como fator de crescimento é totalmente errada. As empresas estão a fazer o caminho certo. Em seis anos, entre 2008 e 2014, o peso das exportações no PIB subiu de 28% para 42%.

Há margem para sermos competitivos na private label?

Benfica, Porto e Sporting estão na Champions mas têm poucas hipóteses de a ganhar. Já aconteceu e pode voltar a acontecer – Portugal ganhou o Europeu… – , mas as probabilidades são reduzidas, É outro campeonato. Mas se olharmos para a Liga Europa, as nossas chances de vencer aumentam. A private label é a Liga Europa da ITV portuguesa.

Temos poucas hipóteses de triunfar na Champions das marcas e do retalho?

Somos bons no B2B. O favoritismo para a vitória na Champions do B2C vai para as marcas globais, com grandes redes de distribuição e um histórico na relação de proximidade com o cliente final. Esse campeonato, onde se ganha mais, mas também se investe mais e se correm muito mais riscos, está ao alcance de muito poucas empresas portuguesas.

O nosso campeonato é o private label?

Sou fã de um private label moderno, que consiste em fazermos todo o desenvolvimento da peça e surpreender os clientes com as nossas sugestões. Este é um desafio para o qual estamos municiados. Se me disseram que vamos apostar para a nossa ITV ser líder no private label sofisticado, vou a jogo. Temos ideias, know how e capacidade industrial para sermos dos melhores do mundo.

Investir em marcas está fora do nosso alcance?

Não digo isso. Há empresas, como a Impetus, que estão a ter sucesso nesse caminho. Mas é outro negócio, que exige muito dinheiro e um risco acrescido, pelo que as empresas devem pensar duas vezes antes de se meterem nele, para não correrem o risco de serem o sapateiro que quer ir além da chinela.

A inovação e os têxteis técnicos são outro caminho em que temos sucesso …

A inovação não é só têxteis técnicos.  A tecnologia não é a única arma. Para ser competitivo no private label é preciso ter um departamento de desenvolvimento inovador,  com engenheiros e designers, e ser capaz de propor produtos sofisticados aos clientes.

Está ao par da evolução nos têxteis técnicos?

Pelo que sei as coisas têm corrido bem. O peso relativo dos têxteis técnicos tem crescido e isso é muito bom.  Conheço bem casos como o da TMG Automotive, de que todos nós portugueses nos devemos orgulhar, porque se trata do melhor que se faz no mundo nessa área. Mas lá está, trata-se de um exemplo sofisticado de B2B, pois no final quem vende os carros são a BMW e a Mercedes, não é a dra. Isabel Furtado…

Também somos capazes de sucesso na economia digital como a Farfetch… 

Numa entrevista concedida è newsletter da Cotec, José Neves foi muito claro a explicar que, do ponto de vista tecnológico, não precisou de ir para fora para ser competitivo. A retaguarda tecnológica está toda aqui no Porto e em Guimarães. Mas para crescer muito e rapidamente teve de rir para Londres, pois havia três coisas que não podia resolver em Portugal: financiamento, comunicação e capacidade de marketing e comercialização.

Como estamos do ponto de vista da economia digital?

A curto prazo não vai ser possível estar num negócio sem ter uma forte presença digital. Mas a economia digital não é só vender online. É um desenvolvimento horizontal. Muitas empresas têm um software de gestão financeira, outro de gestão de clientes, outro para as compras, mas o grau de integração entre todos eles é muito reduzido. Além de que na era digital é preciso descentralizar, dar autonomia às pessoas, aceitar o trabalho em casa.

Quais são os desafios para a ITV na nova década?

O domínio da inteligência coletiva é muito importante, por isso uma associação como a ATP tem de sugerir linhas de rumo, caminhos, e apontar metas. Diria que temos de consolidar este patamar de competir pelo valor não pelo preço. Demos o passo que tinha de ser dado. Agora os novos desafios terão a ver com os volumes de vendas e quotas de mercado, neste posicionamento.

No futuro a aposta deve ser mais quantitativa do que qualitativa?

Devemos fixar metas mais elevadas nas exportações (por que não seis mil milhões para 2025?), aumentar o peso dos têxteis técnicos e ter objectivos concretos para mercados exigentes como os EUA (por que não vender para lá 500 milhões?). Além de que o tema da rentabilidade e dos salários tem de ser posto em cima da mesa.

O que quer dizer com isso?

Vender é essencial. Mas depois é preciso ver as rentabilidades. E, do ponto de vista social, a questão dos salários vai ser incontornável. Um dia a ITV portuguesa terá de reportar números sobre a sua rentabilidade, ter orgulho em pagar bem aos seus trabalhadores e não ter vergonha de declarar que está a ganhar dinheiro.

Perfil

Daniel Bessa, 68 anos, é membro do Conselho Consultivo da ATP e preside ao Conselho Fiscal da Sonae SGPS, Galp e Bial. Dirigiu a Escola de Gestão do Porto e foi, até fevereiro, diretor geral da Cotec Portugal. Elaborou diversos planos estratégicos para a ITV.  É licenciado em Economia pela FEP (foi um dos dois melhores alunos do curso), a cujo Conselho Directivo presidiu apenas com 26 anos.

Começou a dar explicações com 12 anos, para ajudar a pagar os estudos. Quando chegou a altura de escolher o curso foi para Economia pois à época não havia Direito no Porto e a família não tinha dinheiro para o manter a estudar fora de casa. “Sou um jurista frustrado”, ironiza. Em 1970, mal conclui a licenciatura logo começou a dar aulas na FEP. Esteve com António Guterres três anos na Oposição, como porta voz do PS (“Conheci muita gente, corri o país, o PS ficou muitas vezes com os cabelos em pé porque eu não via só defeitos no professor Cavaco Silva. O dr. Mário Soares chamou-me anjinho) , e cinco meses no Governo (como ministro da Economia), de onde saiu a ganhar 1/6 do que ganhava antes – altura em que se reviu numa frase do Karl Marx que numa carta a um amigo se queixava de não conhecer ninguém como ele que se tivesse ocupado tanto de dinheiro tendo tão pouco.

As perguntas de
Alexandra Araújo Pinho
Administradora da LMA

Os membros do Governo deveriam receber formação nas áreas que tutelam ?

Só lhes faria bem. A política é uma arte muito própria e integradora. Há duas artes que me fascinam: a Filosofia, que é o estado mais avançado do conhecimento, e a Política, por ser o estado mais avançado da ação. As competências dos políticos devem ser muito amplas, mas isso não dispensa saberes específicos nas áreas que tutelam Tem faltado substrato técnico e conhecimento da realidade – veja-se a tese de que Portugal poderá crescer através do mercado interno…

Mais apoios do Governo à têxtil seriam essenciais para nos levar à trajetória certa?

É uma área em que me declaro incompetente. Gosto muito de me sentar com um empresário a discutir a estratégia e o futuro para a sua empresa. Mas de apoio públicos percebo pouco. Não quer dizer que não sejam importantes; mas há quem tenha muito mais experiência do que eu nessa matéria, não é a minha praia…

José Alexandre Oliveira
CEO da Riopele

Concorda que a ITV foi quem melhor se adaptou a um mundo globalizado? Se sim acha que os políticos já se convenceram de que temos futuro?

Concordo. A ITV passou de um protagonismo muito negativo e de uma imagem que não era a melhor para um desempenho notável, em particular nas exportações. E sim, julgo que os políticos já se convenceram de que a têxtil tem futuro. Não há feira têxtil importante onde não apareça um político – e eles gostam de se mostrar junto de quem ganha…

Acredita num acordo comercial com os Estados Unidos?

Tinha uma expectativa muito positiva da Parceria Transatlântica. Mas as coisas complicaram-se com o pedido de suspensão das negociações feito pelo presidente Hollande, um especialista em meter areia nas engrenagens. Os Estados Unidos são um grande mercado, onde a nossa iTV tem um presença reduzida, que poderia crescer muito com o acordo comercial. Seria uma oportunidade fantástica. Mas começo a ver o futuro com alguma apreensão. O que está a dar por todo o lado é Trump. Le Pen, Podemos, Brexit etc.. O mais provável é a globalização conhecer um retrocesso.

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