Clementina Freitas
“Estou superotimista quanto ao futuro”
T40 - Fevereiro 19

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Os nossos bombeiros combatem os incêndios florestais com fatos sem proteção térmica; queimam-se com água quente - denuncia Clementina Freitas, CEO e fundadora do grupo Latino, que fornece os bombeiros franceses e desenvolveu, em parceria com o 2C2T da Universidade do Minho e a Critical Software um fato hi tech para os soldados da paz.

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especialização da Latino em uniformes e vestuário de proteção foi uma escolha estratégica ou o agarrar de uma oportunidade?

Começamos a fornecer calças para o Marks & Spencer mas sabíamos que não podíamos estar dependentes de um único cliente. E passamos também a abastecer o Corte Inglês com casualwear e clássicos. Até que, em 1988, surgiu a possibilidade de vendermos uniformes para Angola.

Foi fácil?

Muito simples. Angola estava em guerra civil e os aviões de passageiros andavam vazios. Chegámos a carregar dois aviões por semana. Renovámos todas as fardas da policia, mudando inclusive a cor, de azul petróleo para azul marinho.

Ainda vendem para Angola?

Estamos a retomar a relação, negociando um projeto de investimento na construção de uma unidade fabril em parceria com uma entidade local. O objetivo é produzir em Angola o que está a ser importado para as Forças Armadas.

Em que fase está o projeto?

Há vontade de ambas as partes. Estamos a estudar locais. Será de certeza fora de Luanda. Mas sabemos que é um processo longo e complicado, até porque não há em Angola fornecedores locais de matéria prima e acessórios para este tipo de industria. No início tudo terá que ser importado, mas quem sabe se com a implementação desta unidade, no futuro, outras indústrias, a jusante, não possam aparecer? São fortes oportunidades para a implementação de novas indústrias de matérias primas.

Muitas dores de cabeça em perspetiva?

Iniciar um projeto industrial numa zona geográfica onde não há fornecimento de matérias primas, e tudo tem que ser importado, é sem dúvida um grande desafio. Espero não ter dores de cabeça. Sei que não vai ser fácil! O fator critico neste momento serão os recursos humanos.

Vão ter de expatriar quadros?

A Indústria de confeções em Angola esta a dar já os primeiros passos. Certamente que vai ser necessário criar equipa e deslocalizar alguns recursos. Um setor como a indústria de vestuário é de mão obra intensiva. A formação local será naturalmente obrigatória.

Começar pelo princípio
"Os uniformes militares são uma boa escola, que nos habituou a resolver problemas e desafios"

É um projeto de muito trabalho e risco …

Sim. Toda a indústria é de acompanhamento continuo. Mas a verdade, é que tem que haver sempre uma certa dose de loucura para alguém se aventurar a ser empresário…

Enveredar pelo vestuário técnico foi o movimento certo na hora certa?

Foi. Começamos nas fardas para Angola em 1988 e meia dúzia de anos depois já estávamos a fazer vestuário técnico, muito mais complexo, para a Stihl, obedecendo a normas europeias.

Um upgrade

Os uniformes militares são uma boa escola, que nos habituou a resolver problemas e desafios, como o de garantir um mínimo de conforto a quem usa uma farda durante 30 dias consecutivos sem a despir, em condições adversas, na natureza. Não tem nada a ver com moda. O que está em causa é a performance.

Em 1994, criaram uma marca ProWork para vestuário de trabalho, a que acrescentaram mais tarde a Protactical para vestuário militar. Ter marcas é assim tão importante?

Desde cedo que a nossa estratégia foi investir nas marcas. O produto que vendemos deve de ter a nossa marca. O marketing é feito com marcas, que ajudam a fidelizar o mercado.

"Temos um fato state of art, com sensores embebidos na estrutura têxtil, que fornece em tempo real informação sobre os sinais vitais do utilizador - ritmo cardíaco, temperatura corporal e exterior, transpiração, etc. Pois os nossos bombeiros combatem os incêndios florestais com um fato que nem sequer tem proteção térmica!"

Há um ano lançaram uma terceira marca, Bravian, de moda funcional. Como estão a correr as coisas?

Estamos a acelerar a sua penetração no mercado, bem como a acentuar a componente sustentável da marca, usando cada vez mais materiais reciclados e orgânicos, Já fizemos três coleções, temos agentes em França e estamos em vias de fechar também com um agente na Suíça.

Qual é conceito da Bravian?

É uma marca de moda urbana e funcional, reconhecida por utilizar têxteis técnicos e inteligentes, que garantem elevado conforto e performance, aliados a design, durabilidade e eco-friendly. São coleções curtas dirigidos a nichos de mercado muito específicos como tatuadores, baristas etc.

O que ganham em integrar o consórcio AuxDefense, apoiado pelo Ministério da Defesa?

É um marco importantíssimo na vida do nosso grupo. A parceria com a LMA, Fibrauto e Universidade do Minho, Sciencentrix, Força Aérea e Exército, já tem resultados reais, como o colete de proteção balística e as joelheiras e cotoveleiras com materiais avançados, que estão a ser testadas no Iraque, com tecnologia que a Latino vai comercializar, estes produtos já detêm o selo Combat Test do idD/Ministério da Defesa. 

Vendendo para outros exércitos?

Naturalmente que sim, mas não só. A transferência da tecnologia quer do projeto AuxDefense quer de outros projetos de I&D que desenvolvemos, para incorporar em diversos novos artigos é uma realidade a dar continuidade.

Em que tipo de produtos?

Entre outros temos um colete que recorrendo à tecnologia dos airbags garante a proteção do idoso contra o impacto de eventuais quedas, bem como uma peça de vestuário que melhora o bem-estar e atenua a sensação de fadiga. Eu própria testei uma, e a verdade é que cheguei ao fim do dia bem menos cansada do que é costume.

Apesar de trabalharem para nichos, o vosso espectro de intervenção é muito diversificado…

Tão depressa desenvolvemos um fato de laboratório anti-estático como um fato militar com proteção ao corte, uma farda escolar ou uma jaleca para a restauração. A nossa equipa está preparada para responder adequadamente a cada um destes desafios. 

A saúde está no vosso horizonte?

Sim. Trabalhamos de modo recorrente com o SNS. Estamos inclusive a trabalhar um projeto de I&D nesta área, em parceria com alguns parceiros do sistema tecnológico.

Em que consiste?

Deteção e controlo do estado do fardamento relativamente à exposição bacteriológica nos hospitais, pois como sabemos as infeções hospitalares continuam a ser uma grande preocupação do SNS.

O SNS interessou-se pelo projeto?

Sim. Um dos parceiros faz parte do SNS. Sabemos que um dos problemas, expectáveis na industrialização deste tipo de produto, será o preço mais elevado que os atuais fardamentos. Esperamos, no entanto, que sejam ponderados os custos atuais das infeções hospitalares, quer no seu tratamento e até mesmo em vidas humanas, e se percebam as vantagens de investir em vestuário que ajude a reduzir as infeções hospitalares.

Em que pé está a comercialização do fato para bombeiros que desenvolveram com o 2C2T da U. Minho e a Critical Software?

Uma vez mais constatamos que não é fácil convencer as autoridades responsáveis. Temos um fato state of art, com sensores embebidos na estrutura têxtil, que fornece em tempo real informação sobre os sinais vitais do utilizador – ritmo cardíaco, temperatura corporal e exterior, transpiração, etc. Pois os nossos bombeiros combatem os incêndios florestais com um fato que nem sequer tem proteção térmica!! A própria água quente, pode produzir queimaduras…

Porquê?

Sei lá?! Já ouvi de tudo. Até já ouvi quem me dissesse que se forem demasiadamente bem protegidos os bombeiros aproximam-se demais das chamas e expõem-se a mais riscos!!

O que estão a fazer para mudar esse estado de coisas?

A tentar convencer outras Instituições a adotar a mesma atitude do Ministério da Defesa Nacional que consulta e trabalha com a indústria nacional. Nós não precisamos que nos dêem valor. Só precisamos que nos deixem mostrar o nosso valor. O que está mal é que o foco de quem decide, talvez por falta de conhecimento, não tente criar as melhores condições possíveis para o trabalho dos operacionais.

Quais são as apostas mais fortes que têm em curso ao nível de I&D?

Temos um núcleo interno, o Nidprotech, que está a preparar a certificação e está a desenvolver com a Fibrenamics/TecMinho seis projectos na área da dispersão do impacto de alta e baixa velocidade. Estamos também a melhorar a performance das nossas calças de proteção ao corte de serra elétrica.

Como avalia o sistema nacional de I&D?

Está extremamente evoluído. Portugal está seguramente ao nível de outros países europeus. Considero apenas que necessitamos de melhorar ao nível do aproveitamento de sinergias, entre as várias empresas e os diversos intervenientes do sistema tecnológico, de modo a concretizar a industrialização, ou seja a comercialização dos produtos.

Há ainda excesso de individualismo e um défice de parcerias e colaboração?

O trabalho, que já é excelente, ainda seria mais eficaz e produtivo se houvesse uma maior partilha do conhecimento, de forma a impedir o desperdício que é haver várias entidades a investigarem a mesma coisa ao mesmo tempo. Com mais colaboração, poupava-se tempo e recursos e a evolução e os resultados seriam proveitosos para todos.

Qual é o principal fator que afeta a competitividade da Latino?

A falta de recursos humanos especializados na área técnica. Noto uma falta de visão estratégica para o futuro, por parte de quem formata o nosso sistema de ensino. Não há uma única licenciatura para Engenharia de Vestuário. Mesmo a formação intermédia de qualidade nesta área é escassa. Não é a Engenharia Têxtil que resolve o problema da confeção pois não têm formação para esta área. Precisamos de formação específica. Mas não só…

De que mais sente falta?

De vendedores capazes de vender areia no deserto. Anda toda a gente encantada com as TIC’s. Sabemos quanto exportam as TIC’s e quanto exporta o têxtil….esquecem-se que o lugar de vendedor é um dos mais importantes na empresa. Posso confecionar tudo o que for necessário e o melhor que for possível, mas se não tiver clientes não existo. E não me venham falar que isso se resolve com pessoal de Gestão ou de Marketing. Esses quadros, privilegiam o trabalho de secretária, mais cómodo e confortável que o contacto direto com os clientes.

O preço continua a ser um fator decisivo?

Em 90% dos casos o preço é o principal fator de decisão. E está-se a vender mais barato do que há dez anos atrás.

Como se contraria isso?

Oferecendo produtos cada vez mais técnicos, conquistando a confiança dos clientes através da credibilidade, da qualidade e do serviço. A nossa filosofia, é simples. Não gostamos de estar onde está a multidão. Trabalhamos para a performance e diferenciação do produto. Vemos o que o mercado precisa e satisfazemos essa necessidade.

Quais são os vossos pontos fortes?

Um elevado know how na conceção e desenvolvimento de produtos técnicos; a nossa equipa – que está a ser reforçada; a diversidade de produtos e o tipo de clientes, fidelizados e com baixo risco de crédito.

E onde sente que precisam de melhorar?

Vamos ter de melhorar ao nível de alguns processos internos, implementação Lean. A ampliação das instalações, a acontecer em breve, irá ajudar a simplificar alguns processos, nomeadamente o logístico com armazém semi-automático de picking.

Como vê a Latino no futuro próximo?

Estou super otimista. Temos a estratégia certa e caminhos já bem traçados. Sabemos o que queremos e como vamos conseguir atingir os nossos objetivos. As empresas crescem com pessoas crescidas, disponíveis para abraçar novos projetos e motivadas! Espero que o futuro seja do tamanho dos nossos sonhos.

 

Perfil

63 anos, nasceu em Braga, sendo a mais velha dos três filhos do matrimónio entre um metalúrgico e uma operária fabril. Ainda adolescente, mal acabou o Curso Geral do Comércio, iniciou a sua actividade no mercado de trabalho na TMG, onde permaneceu 11 anos. Em 1986, após três anos na Fabinter/Kispo, a segunda escala do seu percurso profissional, fundou a Latino. Casada há 42 anos com o Guilherme, têm dois filhos: o Nuno, sócio fundador da Spirito Cupcakes e com um projeto na Prozis e o João, dono e CEO da Mezzolab, uma empresa de marketing digital

As perguntas de
Fernando Ferreira
Diretor do 2C2T da U.Minho

Que factores considera mais relevantes para a competitividade e sustentabilidade do seu negócio?

Temos conseguido aumentar a componente sustentável da nossa produção e vamos continuar a reforçá-la. Surgiu-nos muito recentemente uma proposta de trabalho muito interessante que nos levou a ponderar iniciar um projeto na área da economia circular.

 

Como perspectiva a relação entre a indústria e os centros de investigação?

Acho que já é muito positiva e ainda tem muito espaço para melhorar. Uma não deve viver sem a outra. Temos todo o interesse na cooperação. Claro que não podemos desperdiçar esforços a perseguir soluções utópicas – produtos que o mercado não compra. A nós só nos interessa desenvolver produtos que sejam industrializáveis, vendáveis e rentáveis. As empresas não são centros de investigação. Nós não vendemos investigação, vendemos produtos.

Paulo Vaz
Diretor geral da ATP

condições para criar em Portugal um cluster de proteção e defesa incluindo a têxtil de alta tecnicidade, como têm os EUA, Israel e a França?

O Cluster Têxtil, do qual somos fundadores, já tem um SIG Militar e de Proteção. Ainda estamos a dar os primeiros passos e trata-se de um clube aberto. Provavelmente um dia teremos de evoluir para um clube fechado de fornecedores certificados da indústria de Defesa, tal como existe nos Estados Unidos.

 

O Governo tem manifestado desejo de que as forças de segurança e defesa sejam equipadas pela indústria nacional. No entanto, os concursos públicos acabam por ser ganhos por quem oferece produto mais barato e importado. Não acha paradoxal esta situação?

Felizmente as coisas estão a mudar. Há sinais positivos nesse sentido. O Ministério da Defesa parece estar imbuído de um espírito de colaboração com a indústria portuguesa. E a Plataforma da PSP para o fornecimento das fardas militares, que é da nossa responsabilidade, foi iniciada com um contacto do MAI à indústria nacional, por via da ATP.

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