Ana Roncha
"O Designer
tem de compreender que as empresas têm de dar lucro"
T38 Dezembro 18

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Não tem grandes razões de queixa do que a vida lhe tem dado. Ainda antes de chegar aos 40 anos, já concretizou os sonhos da adolescência - trabalhar no mundo da moda e viver em Milão, Nova Iorque e Londres. O Erasmus levou-a ao Politécnico de Milão, no último ano do curso. O primeiro emprego a sério foi em Nova Iorque, numa agência onde trabalhou contas de marcas como a Puma, Nike, MoMA e L’Oreal. E vive em Londres há sete anos, desde que uma conversa informal a levou a dar aulas no mestrado que agora dirige - no final convidaram-na para ficar como professora e Ana Isabel Roncha Alves decidiu logo ali, em duas horas, mudar por completo o rumo da sua vida. No entretanto, já tinha passado pela Salsa e Moda Lisboa, acumulando experiências em todos os segmentos do mundo da moda, que a municiaram com uma visão global de 360 graus sobre esta indústria. “Comecei pela componente mais artística da indústria, onde ganhei uma sensibilidade que me tem sido muito útil na área de negócio onde eu sinto que posso aportar mais valor, que é o marketing e a gestão de marca”, explica

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uais são as grandes diferenças entre o ensino de design de moda em Portugal e o praticado no London College of Fashion (LCF)?

Quando eu era estudante, penso que nem sequer havia cá uma licenciatura em Design de Moda. Agora já há nessa área uma oferta, privada ou pública, que abrange todos os graus académicos. Tem havido uma evolução. Mas continua a haver uma lacuna muito grande na oferta de ensino de outras competências indispensáveis à indústria de moda.      

O que está a fazer falta?

A moda é uma indústria como outra qualquer, que precisa de uma enorme variedade de diferentes recursos humanos especializados. O design de moda é uma componente de um sistema, que abrange muitas outras áreas. O designer trata da parte criativa e deve trabalhar em colaboração com outras áreas do conhecimento necessárias para o desenvolvimento do negócio.

Áreas em que a LCF tem oferta de ensino …

A grande mais-valia da minha universidade é a de dar formação especializada a 100% na indústria da moda, compartimentada em três diferentes escolas, a de Design e Tecnologia, outra de Comunicação e Media, e a Escola de Negócios, em que se transmitem conhecimentos de gestão e marketing.

É esse o calcanhar de Aquiles da nossa fileira de moda?

Temos de ter a noção que por maior que seja o talento criativo do designer, ele sozinho não vai a lado nenhum. Se não tiver quem faça a gestão do negócio e o ajude a definir o tipo de abordagem e posicionamento que deve ter no mercado, o que ele está a fazer não é um trabalho mas um hobby.

Uma revolução em curso
"Há uma tendência clara para uma sharing economy. Os consumidores começam a optar por alugar roupa"
 

Há muita gente a agir como se fosse um hobby?  

Há um estigma à volta do mundo da moda. Há muito glamour, os desfiles são muito aspiracionais, mas isso não nos pode fazer esquecer que a indústria da moda é um negócio enorme – só no Reino Unido movimenta anualmente 32 milhões de libras!

Os desfiles, como o Portugal Fashion, não são importantes?

São uma ferramenta para obter notoriedade. São úteis na medida em que dão exposição e atraem as atenções da imprensa internacional. Mas depois é dar continuidade. Esta parte é a mais cara. É aqui que entra o investimento que permita a estas marcas competirem a nível global.  

Como se resolve o défice de recursos humanos especializados para a indústria da moda, num país pequeno como o nosso?

A lacuna pode ser colmatada se as escolas de negócios tradicionais oferecerem formação especializada, desenhada especificamente para a indústria de moda, pelo menos três áreas nucleares: Gestão de Marca e/ou Retalho; Buying & Merchandising; Marketing e Comunicação.

É inevitável que a relação entre estilistas e industriais seja sempre muito difícil e acaba em divórcio?

É normal que haja dificuldades de entendimento, pois têm diferentes prioridades e usam linguagens diversas, como se trabalhassem diferentes áreas do cérebro.

Como se fazem sinapses?

Com cedê

Não podemos ter medo de partilhar experiências. Temos de acabar com o individualismo
ncias de parte a parte. O designer tem de compreender que as empresas têm de ser geridas para dar lucro e serem sustentáveis, e o seu trabalho deve ser encarado como parte de um negócio. E os industriais têm de estar atentos às mudanças sociais, de culturas e mentalidades.

Os nossos empresários estão a ajustar-se a essas mudanças?

Graças à chegada de uma nova geração à liderança, assistimos a uma mudança na cultura empresarial na nossa indústria têxtil e de vestuário, que lhe permite ser competitiva tendo como pontos fortes a rapidez na resposta, flexibilidade e personalização da produção.

Um novo estilo de liderança?

Só se é um grande líder quando nos rodeamos de pessoas melhores que nós e as deixamos trabalhar. E quando percebemos que é tão importante o que vai de cima para baixo como o que vem de cima para baixo. Só assim se consegue ter uma empresa ágil e capaz de se ajustar à evoluções do mercado e do consumidor. Uma boa liderança sabe reconhecer, captar e reter o talento.    

Está otimista nesse capítulo?

Sinto que há cada vez mais empresários a terem a consciência de que é preciso ser cada vez mais inovador e flexível nas formas de trabalhar e que têm de adaptar as suas estruturas aos novos comportamentos dos recursos humanos e dos consumidores.

Está cada vez mais exigente ser empresário na ITV?

A roupa não está no primeiro lugar das necessidades dos consumidores. Não é um smartphone ou uma pasta de dentes. Nenhum de nós precisa de mais uma camisa ou par de calças. Somos movidos pelo desejo de compra. Para se ser competitivo, temos de estar sempre atentos a tudo quanto se passa num mercado extremamente volátil e ir adaptando a nossa proposta de valor.

São necessárias cada vez mais competências …

E constantes. O empresário precisa de criar empatia e estabelecer relações preferenciais com os clientes, mas também com os seus criativos e funcionários. Para se manter competitivo, tem de estar a par com o que acontece nas redes sociais, nos desenvolvimentos da tecnologia. Se só nos focarmos na produção, vai haver sempre quem faça mais barato.

Sabemos que o preço não é o caminho. A qualidade, flexibilidade e serviço são suficientes para sermos competitivos?

Acrescentados de inovação e design. Temos de criar produtos inovadores e com valor acrescentado, capazes de se diferenciarem dos produtos de luxo e, por outro, dos produtos de baixa qualidade produzidos no Terceiro Mundo.    

O grande investimento que implica construir uma marca e a estreiteza do mercado interno explicam a nossa dificuldade no B2C?  

A esses fatores, ambos importantes, junta-se uma outra questão de índole cultural. Ao contrário dos espanhóis, o consumidor português não tem o hábito de preferir o que é nosso – ainda gosta de comprar marcas internacionais. Há sinais de mudança nesse comportamento, mas ainda não são suficientes para alavanca as marcas internas.    

A inovação tecnológica e as redes sociais vieram facilitar o processo de construção de marcas?

Facilitam o aparecimento de start ups. O problema surge depois, no período em que as marcas precisam de ganhar escala e para isso necessitam de uma injeção de capitais para poderem competir a outro nível e se assumirem com outra dimensão.  

As marcas portuguesas falham por falta de investidores, no momento de dar o salto. É isso?

No Reino Unido é bastante mais fácil, pois há empresas de venture capital disponíveis para financiar marcas em crescimento, porque sabem que isso pode ser tanto ou mais lucrativo que investir numa start up de outro setor.   

Ao contrário dos que acontece cá em Portugal…

Penso que aí estamos claramente em desvantagem. Não me parece que tenhamos a mesma cultura de investir em negócios da área da moda.

Temos de resignar ao B2B?

A capacidade produtiva da nossa ITV é inegável e internacionalmente reconhecida. Somos muito bons a fazer private label. Mas no setor da moda ainda não atingimos a nossa capacidade máxima. Há potencial para criar mais marcas e para ter sucesso também no B2C.      

O que recomenda?   

Aproveitar segmentos de negócio que não estão a ser explorados pelas marcas internacionais. A nível global, já não há espaço no segmento low cost. Mas há nichos que podem ser servidos com sucesso por marcas nacionais. Nos segmentos médio e alto do mercado paga-se mais por uma peça para se ter a garantia de que ela tem qualidade e vai durar mais tempo.    

O segmento low cost está fora do nosso alcance?  

Não acredito que o modelo Inditex, H&M e Primark se volte a repetir. Esse segmento de mercado está completamente saturado. Seria um suicídio entrar em guerra direta com esse tipo de marcas. Não é por acaso que esses grupos estão a apostar em marcas para outros nichos de mercado, como a H&M com a Cos e a Arket.

Faz sentido uma empresa industrial fazer private label e ao mesmo tempo ter marca própria?

Há espaço para ser competitivo e ter sucesso nessas duas atividades. Mas é um erro ser a mesma entidade central a fazer as duas coisas. É obrigatório ter duas unidades de negócio independentes, pois são negócios completamente distintos a todos os níveis, logo a começar pelos recursos humanos necessários. Ninguém consegue fazer tudo bem…     

A fast fashion já era ou vai continuar a conviver com uma nova geração de consumidores com preocupações ambientais?  

A fast fashion continua a ter uma expressão muito grande, mas há uma fatia de consumidores que está a fugir desse segmento. Há cada vez mais nichos de mercado, cada vez mais gente a repensar a sua forma de consumir e a relação que tem com o produto e as marcas. Há uma cada vez maior consciencialização de que o consumo desenfreado tem consequências.    

Nas novas gerações?

Não só, mas também. O repensar do consumo é transversal a várias gerações e as preocupações não são apenas ambientais mas também sociais e com a sustentabilidade dos modelos de negócio. Sustentabilidade não é só a escolha dos materiais, de uma eventual preferência pelo algodão orgânico, cuja produção pode até ser mais prejudicial ao ambiente do que a do tradicional …  

O despertar dos consumidores para as questões sociais é recente?  

Penso que um gatilho foi a tragédia do Rana Plaza, em 2013, no Bangladesh. O consumidor está cada vez mais consciente de que se vê uma t shirt à venda a três libras isso não é apenas devido à economia de escala na produção – alguma coisa está muito mal na cadeia de produção.   

Quais as consequências desse repensar?  

Mudança de mentalidade e um esfriamento ou alteração na forma de consumo. O modelo de uma a duas entregas por semana para obrigar as pessoas a irem todas as semanas às lojas está a decrescer.

Para que novos modelos de consumo a nossa ITV tem de estar preparada?

Há uma tendência clara para uma sharing economy, de que Uber e a Airbnb são os exemplos. Esse fenómeno dos consumidores favorecerem o acesso a bens em detrimento da sua propriedade já está há alguns anos no vestuário com empresas como a Rent the Runway, que aluga roupas e acessórios e já se transformou na maior lavandaria a seco dos EUA .     

O esfriamento no consumo não é boa noticia para quem produz …

Obriga a produção a ajustar-se às novas e diferentes necessidades e comportamentos dos consumidores, que estão na origem do fenómeno do aluguer de vestuário e também do crescimento do negócio da venda de roupa em segunda mão.   

Qual o papel das redes sociais nessa mudança?

Acentuam-na. Há cada vez mais gente que não gosta de aparecer no Instagram duas vezes com o mesmo vestido. Isso favorece a tendência para o aluguer. Além de que não faz sentido comprar uma camisola 100% caxemira, que dura uma vida, para a usar duas ou três vezes, e, nas grandes cidades, que há cada vez menos espaço nos armários…       

A fragmentação do mercado somada à diminuição do consumo criam problemas à ITV …

Mas criam novas oportunidades de negócio, por exemplo ao nível de entrega e recolha de vestuário. Além disso, para sermos bem sucedidos temos de perceber que está em curso uma amálgama de culturas que está criar pessoas multiglobais – e por isso temos de nos mover e pensar de uma forma global. A Farfetch teve essa percepção precocemente.

Qual é o seu perfil como consumidora?

Gosto de tocar no tecido e de verificar a perfeição das bainhas. Dou muita atenção ao detalhe. Mas apesar de trabalhar em Oxford Circus, levo uma vida agitada em que não há hora do almoço para ir às compras. Por isso compro tudo online – mas de uma forma cada vez mais responsável.

Qual é regra número um para quem vende online?

Assumir a omnicanalidade, o mobile first, e facilitar o processo de escolha, compra e pagamento – ter, por exemplo, o free shipping e free return. como norma.  

Portugal tem no estrangeiro a imagem de ser um país de moda?

Somos considerados excelentes ao nível da produção. Todos elogiam a nossa qualidade, rapidez na resposta e elevada capacidade de inovação, mas ainda não somos reconhecidos como um país produtor de moda ou tendências. Há bons exemplos, como a dupla Marques’Almeida e as Josefinas, e estamos numa trajetória crescente, mas ainda há muito a fazer.

Perfil

A diretora do mestrado em Strategic Fashion Marketing do London College of Fashion nasceu no Porto, filha do matrimónio entre uma engenheira civil, que trabalha na EDP, e um gestor de empresas do Millennium BCP; entretanto reformado. Cresceu em Paranhos e estudou no Luso-Francês e António Nobre antes de se licenciar em Design de Comunicação na FBAUP. É doutorada em Gestão de Design e Marketing para a Indústria de Moda (UMinho) e tem um pós doc em Enterprise Innovation (London University of Arts).  Casada com Mathew (argumentista e e-learning advisor), vivem em Londres e têm um filho de três anos, o Thomas, que vai ter um irmão mais novo no final de janeiro

 

As perguntas de
Paulo Vaz
Diretor geral da ATP

A indústria da moda está a mudar a uma velocidade estonteante. A digitalização e a sustentabilidade são os drives desta mudança?

A influência do digital vai ser cada vez maior. Pertence à Pré-História o tempo em que as empresas se davam satisfeitas por terem um site e os comerciais tomarem nota das encomendas num iPad. Isso são meras ferramentas. Hoje em dia a digitalização é muito mais abrangente, é a inteligência artificial, a realidade aumentada, o machine learning, o block chain, automatização, etc – ou seja, uma nova forma de pensar em que o digital está no centro. É ser digital first como norma.

À luz do Brexit, como vê os cenários para futuro e que recomendação daria às empresas portuguesas?

Há uma incerteza muito grande sobre o que vai acontecer, mas acredito que pode ser uma oportunidade para a nossa ITV. A saída do Reino Unido da UE vai criar um êxodo de capitais, criativos e departamentos das marcas que podemos atrair. 90% da indústria da moda britânica votou pela permanência. O potencial de captar investimento direto estrangeiro é a grande oportunidade que o Brexit nos pode trazer.

Isabel Paiva de Sousa
Executive Education Advisor da Porto Business School

Como vê o papel das business schools na nova realidade do negócio da moda?

Já é consensual que não aprendemos tudo nos três/cinco anos em que andamos na faculdade, e que precisamos de periodicamente refrescar e atualizar o capital de conhecimento e competência. As business schools têm um papel fundamental nesse processo, mas devem repensar os seus modelos pedagógicos, para se ajustarem às novas realidades de um geração mais digital e com capacidade de concentração cada vez mais reduzida. É preciso inovar nos formatos e portefolio de formação.

Atendendo ao aparecimento de novos modelos de negócio que competências de gestão considera relevantes para que Portugal continua a aportar valor ao mundo?

As soft skills são cada vez mais importantes. Não podemos continuar a ser tão individualistas. Temos de ter abertura para partilhar experiências, sem medo que a concorrência nos vá imitar. A capacidade de trabalhar em equipa e em rede, de fazer networking, de captar e reter talentos são competências fundamentais nos dias de hoje.   

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