Paulo Ribeiro
“Soubemos fazer a aposta certa nos fatos por medida”
T37 Novembro 18

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Quando enfrentou os piores momentos da crise internacional, a Crialme fez uma aposta arrojada e investiu nos fatos à medida e na alfaiataria. Essa decisão vai-se revelando cada vez mais acertada, com a empresa de Paredes a produzir para grandes marcas internacionais.

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s “máquinas” que fazem a diferença são as pessoas que trabalham à mão e têm um know how único – afirma Paulo Ribeiro, 50 anos, Commercial Department Manager da Crialme.

A crise de 2008 fez tremer a Crialme?

2009 e 2010 foram anos complicados. A classe média retraiu-se quando a Lehman Brothers abriu falência, a GM balançou na corda bamba e, de um dia para o outro, a Catterpilar mandou 20 mil trabalhadores para casa.

As pessoas deixaram de comprar fatos?

Aguentaram. Ficaram na expectativa. Em vez de comprar mais um fato, muita gente optou por adquirir uma camisa… E os distribuidores resolveram escoar o que tinham em stock antes de colocarem mais encomendas.

Foi um período difícil …

Um período de incerteza que nos afetou porque tínhamos mais de 800 trabalhadores – incluindo uma empresa de confecção para senhora em Figueiró dos Vinhos – e 15 fábricas a trabalhar para nós a tempo inteiro.

Como atacaram a questão?

Quando se tem de gerir num período de grande turbulência, a primeira coisa a fazer é rodear-nos de pessoas com espirito positivo. Como aprendi com o Herr Kullman, um alemão que foi diretor de produção da Profato, a solução para enfrentar uma a crise é apagar o s de crise e criar 🙂

O que é que resultou desse esforço criativo? Qual foi a receita? 

Colocamos o foco no fabrico de fatos por medida, que já valem cerca de 70% de toda a nossa produção. O ADN da Crialme é esse – o da aposta na qualidade e em acrescentar cada mais valor ao produto que fazermos.

Como foi a transição de um modelo para o outro?

Foi uma transição lenta, mas muito segura, uma evolução em que contamos com o apoio dos clientes – aprendemos sempre muito com eles. Nós sempre fizemos pequenas séries. Mas tivemos de nos ajustar aos novos tempos e estamos preparados para encomendas de 100 peças.

Alfaiate à medida
Para além dos tecidos, os clientes podem personalizar os botões, o forro e os pespontos.

Esse ajustamento já está acabado?

Os trabalhos de restruturação da Crialme já duram já oito anos e não só ainda não acabaram como nunca vão acabar. Trata-se de um processo permanente de automatização dos processos, para ganharmos tempo, tornando tudo mais rápido para aumentar a nossa competitividade e rentabilidade.

A mudança no modelo produtivo obrigou a grandes investimentos?

Nos três últimos anos investimos mais de quatro milhões de euros. Ampliamos as instalações, a que foram acrescentados novos espaços – um de armazém e outro administrativo -, passando a ocupar mais de dez mil m2. Melhoramos bastante o show room bem como a loja de fábrica, que é uma ferramenta que ajuda o negócio com os clientes de alfaiataria.

E no que toca a equipamentos? 

Compramos soluções de software de corte automático de duas cabeças. Um investimento superior a meio milhão de euros que nos permite uma maior flexibilidade e qualidade no processo de corte e responder adequadamente à elevada rotatividade de modelos e às pequenas quantidades.

"Nós somos muito competitivos quando se está a falar do melhor ponto de equilíbrio entre qualidade e preço. A primeira vez que estou com um potencial cliente, a última coisa de que lhe falo é do preço - e faço isso propositadamente."

O caminho é esse?

A nossa estratégia consiste em apostar cada vez mais na confecção por medida, bem como no trabalho manual, com pormenores introduzidos à mão nas peças. Na alfaiataria para homem, somos uma empresa de referência a nível mundial pela nossa flexibilidade e capacidade de adaptação às tendências da moda.

Não estão preocupados com o facto dos homens usarem cada vez menos fato?

Nós estamos direccionados a um nicho de mercado de média/alta gama, constituído por pessoas que não deixarão de usar fato e apreciam as peças personalizadas que fazemos, em que, além dos tecidos, podem escolher os botões, o forro, os pespontos. E temos outras armas.

Quais?

A nossa tecnologia permite-nos sermos muito rápidos na capacidade de resposta. A encomenda chega de manhã e à hora do almoço já está em produção. Uma encomenda normal demora entre 20/30 dias a ser entregue. um prazo que desce se for uma encomenda urgente.

A rapidez é fundamental?

Quando se trabalha por medida, a rapidez é um fator de competitividade decisivo. Quando encomendamos agora um fato não é para o usar no próximo verão, mas sim já, neste inverno.

Fazer 70% da produção por medida deixa-vos satisfeitos?

Estamos a apontar aos 200% 🙂 Agora a sério, o objetivo é aumentar essa percentagem, mas não nos podemos esquecer que precisaremos sempre de ter confecção em série para equilibrar a produção.

Vão alargar o leque de produtos para atenuar a dependência ao fato de homem? 

Temos feito muitos blusões por medida e provavelmente vamos crescer nessa área. Também fazemos sobretudos. E temos parcerias com fábricas de camisas. Termos as medidas dos nossos clientes na plataforma digital facilita esse passo.

Está nos vossos planos diversificar para a roupa de senhora? 

Trata-se de um conceito distinto, mas é um segmento com um mercado muito grande. Não nos seria muito difícil fazer roupa clássica para senhora. Essa possibilidade vai estar sempre em cima da mesa, mas não é uma prioridade.

O que pretenderam com a remodelação da plataforma digital?

É mais um passo na eficiência e automatização dos processos. O novo software de gestão de produção permite aos clientes fazerem os pedidos directamente na plataforma digital – no fundo são eles a fazerem o trabalho de back office – e analisarem em tempo real em que ponto está a sua encomenda, alertando-nos logo se por algum acaso ela encalhar.

Terem registado marcas próprias significa que vão deixar de trabalhar apenas em regime de private label

Estamos a fazer uma coleção que apresentamos aos nossos clientes mostrando não só o que somos capazes de fazer industrialmente mas que também conta uma história, apresenta uma harmonia de cores e uma selecção própria de materiais. É mais um serviço que prestamos.

Está fora de questão uma marca própria para consumo externo?

Neste momento estamos a desenvolver uma coleção em parceria com um alemão. Não é impossível que um dia trabalhemos uma marca própria. Mas não é um assunto prioritário.

É um desafio complicado?

Trabalhar uma marca obriga a ter uma estrutura nova, com experiência e know how na área da distribuição, bem como uma abordagem completamente diferente do marketing. Cada um deve fazer o que é bom a fazer e nós somos bons a produzir. Mas isso não nos impede de ir fazendo experiências.

Exportam toda a vossa produção, 40% para os Estados Unidos, 60% para a Europa. Estão contentes com esta geografia?  

Gostaríamos de ter mais clientes. De manter todos os que temos e de arranjar mais, mais pequenos e em mais mercados, para diversificar riscos.

O preço ainda é um fator decisivo? 

O preço é sempre um fator importante, mas a nossa aposta prioritária é na qualidade de produção, serviço e o cumprimento do prazo de entrega. Nós somos muito competitivos quando se está a falar do melhor ponto de equilíbrio entre qualidade e preço. A primeira vez que estou com um potencial cliente, a última coisa de que lhe falo é do preço – e faço isso propositadamente.

Que percentagem dos tecidos que compram são fabricados em Portugal? 

Muito pequena. Compramos fundamentalmente a empresas italianas e inglesas que estão preparadas para entregas rápidas de pequenas quantidades. A meio da tarde de sexta feira encomendámos um tecido e ontem, 2ª feira, ao fim do dia, ele já cá estava.

Os fornecedores portugueses não dão essa garantia?

Demoram muito tempo a reagir, provavelmente porque não investem em stocks permanentes. Além disso, a maioria dos clientes diz-nos expressamente o tipo de tecido que querem que usemos na confecção.

Não tem uma visão muito risonha do resto da ITV…

Nada disso. Antes pelo contrário. As empresas do setor estão a fazer um excelente trabalho. A têxtil portuguesa está claramente no bom caminho – por alguma coisa é que bate sucessivos recordes de exportações. Só que na área da alfaiataria por medida não encontramos fornecedores que satisfaçam as nossas necessidades.

Sofrem com a escassez de mão de obra qualificada? 

Nas confecções, o trabalho qualificado é uma arte que leva anos a aprender e demora muito tempo até atingir o estágio de perfeição que ambicionamos na Crialme. E há áreas, como a modelagem, em que nem sequer existe formação.

Como resolvem isso?

Temos de ser nós a dá-la. Não temos outro remédio. Investimos em dar a formação dentro de portas e dessa maneira temos conseguido satisfazer as nossas necessidades.

A crescente automação de processos atenua esse problema da falta de pessoal qualificado?

Os equipamentos ajudam bastante, mas ainda não foi inventada uma pílula que se dissolva num copo de água e a seguir, por um golpe de magia, apareça feito um fato por medida 🙂

Ou seja … 

No nosso segmento da alfaiataria há muito trabalho manual, minucioso e personalizado que confere ao requinte e acrescenta valor ao produto. As máquinas que fazem a diferença são as pessoas que trabalham à mão e têm um know how único.

A energia é custo de contexto que mais penaliza a vossa competitividade?

Investimos 200 mil euros num aproveitamento fotovoltaico que prevemos que nos dará uma auto-suficiência na ordem dos 40% no que toca à nossa fatura energética mensal que anda nos oito mil euros.

Então qual é o principal razão de queixa?

Não termos acesso aos programas comunitários, como o Portugal 2020, por sermos considerados uma grande empresa. Dá vontade de dividir a Crialme por dez para contornar este obstáculo.

Essa limitação não vos tem impedido de investir?

Não há outra hipótese. Concluímos agora um ciclo de investimentos de três anos, mas não parámos nunca de renovar o parque de máquinas, de adquirir novos equipamentos. Para ter sucesso tem de se estar permanentemente a investir na melhoria da qualidade da produção, o que tem sido possível porque os accionistas reinvestem os lucros na empresa.

O que é que a Crialme vê quando se olha ao espelho?

Uma alfaiataria que trabalha com as melhores e maiores marcas do mundo. Uma empresa que privilegia o trabalho manual aliado à inovação tecnológica, que soube reinventar os seus processos e fez a aposta adequada ao investir na produção de fatos por medida.

O futuro é radioso?

Temos a estratégia certa, mas sabemos que há muitas dificuldades no caminho, que esperamos ultrapassar continuando a investir em pessoas e equipamentos.

Perfil

50 anos, nasceu em Paços de Ferreira, filho de uma doméstica e do dono de um armazém de materiais para a construção civil. Estudou no Colégio da Formiga, em Ermesinde, em regime de semi-internato. No final da adolescência, o seu envolvimento numa start up industrial têxtil (uma fábrica de meias em Santo Tirso) foi frustrado pela chamada para a tropa. Casado com uma educadora de infância (que tem sociedade numa papelaria), têm uma filha, que estuda Gestão em Braga e que, quando acabar o curso, planeia ir para o estrangeiro, conhecer realidades diferentes

As perguntas de
Júlio Torcato
Designer

Sendo a alfaiataria por medida e personalizada um negócio com forte componente emocional, que implica a interação entre o cliente e o artesão, como se ultrapassa esse problema ao industrializar o processo?

Por muito boa que seja a tecnologia, a componente humana é sempre o fator decisivo. Com muito trabalho, muita dedicação e a mentalidade de não nos darmos nunca por vencidos quando as dificuldades aparecem. Não podemos fazer tudo ao mesmo tempo, mas já disponibilizamos aos nossos clientes um enorme leque de alterações.

 

O que falta evoluir para otimizar a chamada costumização industrial na área da alfaiataria?

É muito difícil encontrar alguém que faça, como nós fazemos, tantas alterações por medida ao desenho do vestuário, para satisfazer todos os pedidos dos clientes. Nunca nos damos por vencidos. Há que reinventar a tecnologia para podemos ir ainda mais longe. Mas a verdade é que se acharmos que não podemos fazer mais nada de novo o nosso trabalho perde a piada toda …

Paulo Vaz
Diretor Geral da ATP

O que levou a Crialme a passar de confeccionador em série a confeccionador de fatos por medida? Foi o mercado que vos impulsionou nesse sentido?

O que nos impulsionou foi o espírito Crialme, que é partilhado por toda a gente na empresa e nos leva a ter sempre vontade de ir mais além, fazer coisas diferentes e saber onde está o valor acrescentado.

O modelo produtivo da Crialme costuma ser citado como exemplo da introdução da industria 4.0 nas atividades tradicionais? Como foi a transição de num modelo para outro?

A transição foi lenta, segura, contínua e feita em equipa. Quando surge um problema, todos nos envolvemos na busca de uma solução, um processo facilitado pela rapidez com que circula a informação na nossa empresa.

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