Isabel Costa
“Estar no Interior
é uma enorme desvantagem competitiva”
T44 - Junho 19

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Temos de nos ajudar uns aos outros - alerta Isabel Costa, a engenheira que, em contramão com o êxodo do interior para litoral, criou o projeto de reinvenção do burel, para ajudar a sarar o tecido social de Manteigas dos dramáticos estilhaços que o dilaceraram, provocados pela crise que levou ao encerramento sucessivo das 11 fábricas de lanifícios que eram as fundações onde assentava a economia da região

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que vos levou a trocar a cidade pela serra?

Gostávamos muito de fazer caminhadas na montanha. Desde o início deste século que se começou a desenhar nas nossas cabeças o projeto de iniciarmos uma segunda vida, mais perto da natureza, e aí recebermos os amigos. A escolha da Serra da Estrela foi do meu marido João. Eu teria optado pelo Gerês.

Descobriram a Casa das Penhas Douradas … 

As Penhas Douradas foram a primeira estância de montanha no país, concebida por Sousa Martins, na sequência da Expedição Científica de 1880 realizada pela Sociedade de Geographia de Lisboa à Serra da Estrela, que considerou as Penhas Douradas o lugar mais saudável de Portugal pela pureza e frescura do seu ar… A estância tem uma arquitetura senatorial única no país, e mantém-se intacta.

Apaixonaram-se e recuperaram-na …

130 anos depois decidimos recuperar um sanatório em ruínas e abrir um hotel de quatro estrelas, a  Casa das Penhas Douradas, que tem vindo a retomar uma tradição que quase se perdera nesse local mágico … a nossa Montanha Mágica.

Como é que o pequeno projeto hoteleiro ganhou uma dimensão industrial?

Manteigas estava profundamente deprimida. Uma vila que tinha sido rica, habitada por imensa gente, e com um nível social e económico elevado, atravessava uma crise gravíssima. Não podíamos ficar indiferentes ao apelo do bispo da Guarda, D. Manuel Felício, e fizemos o que pudemos para sermos parte da solução de alguns problemas.

O que fizeram?

Com a colaboração da comunidade, amigos e consultoras foram elaborados projetos de negócios a partir de recursos da região. Nós assumimos dois, um alimentar –  a Penhas Douradas Foods, que produz e comercializa produtos gourmet, desde vinagrete de maçã com gengibre a ketchup de abóbora, passando por pesto de urtigas … -,  que vendemos anos depois para nos concentrarmos no burel.

reinventar a tradição
Reinterpretámos o burel à medida do presente, conjugando a arte e o saber dos artesãos com o design mais moderno

Qual era a ideia?

Apaixonamo-nos por um parque industrial do século XIX, que incluía teares Porto e estava destinado a ir para a sucata e ser derretido em ferro. A ideia era inventar um negócio para salvar e criar emprego, conhecimento e permitir que aquelas máquinas continuassem a funcionar. Ressuscitar uma empresa falida e o burel foi a resposta a estas três necessidades.

Qual foi o primeiro passo? 

Alugamos a Sala das Linhas da Lanifícios Império, que estava em processo de insolvência, e começamos a por em prática a nossa filosofia que consiste em dar valor ao que é nosso, mantendo o património industrial no lugar onde está. Em vez de musealizar as fábricas, permitindo que elas morram, demos-lhes vida, mantendo-as a trabalhar e a gerar emprego. Foi por isso que apostamos no burel.

Porquê?

É um tecido tradicional, 100% lã de ovelha, que além de ser de fácil manutenção proporciona excelentes isolamentos acústicos e térmicos. Nos países nórdicos e do centro da Europa usam a lã na arquitetura e na decoração. Pegamos no burel e demos-lhe novas cores, formas tridimensionais e utilizações inovadoras.

Somos competitivos pelo valor que criamos. Não poderemos nunca ter escala. O nosso objetivo é valorizar o que fazemos - à mão - de tal forma que sejamos percepcionados em mercados de arte e luxo

Reinventaram o burel?

Reinterpretámos o burel à medida do presente, conjugando a arte e o saber dos artesãos de Manteigas com o design mais moderno, criando peças, produtos e soluções originais de traço contemporâneo. Combinamos o know how de uma indústria tradicional com a incorporação permanente de design, inovação e novas funcionalidades.

Dito assim parece fácil…

Mas não foi. Os primeiros tempos foram terríveis. Vivíamos um ambiente de crise, crise, crise. Criávamos um novo negócio dando vida a uma empresa falida no momento em que só víamos empresas a fechar, isso diz tudo…

Qual é a receita para vencer esses Adamastores?

Se houver paixão e energia, acredito que não é necessário fechar nada. O que é preciso é olhar para isto como uma missão. O que eu digo pode parecer romântico, mas não é. É muito duro. Para ser recuperável, o património tem de ser valorizado, de ser olhado com outros olhos, para lhes darmos novas funcionalidades.

Como é que conseguiram tornar-se competitivos nos lanifícios? 

Isto não é uma indústria de lanifícios. É um projeto de recuperação de património. Somos artesanato. Trabalhamos com máquinas do século XIX. Os nossos teares de lança fazem seis mantas por dia. Isso não existe em mais lado nenhum. Um metro quadrado deste ponto primavera leva 16 horas de trabalho de uma senhora. Nunca podemos ter preço, nunca podemos ter volume.

Onde vão buscar a competitividade?

Somos competitivos pelo valor que criamos. Não poderemos nunca ter escala. O nosso objetivo é valorizar o que fazemos – à mão – de tal forma que sejamos percepcionados em mercados de arte e luxo.

Como foi a passagem de um grande grupo como a Sonae para uma startup?

Uma passagem de grandes números, com muito zeros, para pequenos números, com pequenos zeros, é sempre muito violenta :-). Gerir uma estrutura muito reduzida, é muito diferente de estar na administração de um grande grupo, com todo o suporte que isso implica. Foi um enorme desafio.

Qual foi a sua primeira preocupação como empresária?

Como sou uma sonhadora, esforcei-me por não dar passadas maiores que a perna e não cair em ilusões. E nada isso aconteceu. Felizmente tenho um marido fantástico, que tem sempre os pés bem assentes na terra.

Abriram a loja do Chiado logo em 2012, ainda o projeto dava os primeiros passos, e a do Porto em 2015. Qual foi a pressa?

Tínhamos a Burel Factory – a antiga Lanifícios Império – as pessoas a trabalharem e as máquinas a funcionarem. Como arranjar clientes demora anos, decidimos ser clientes de nós próprios. Era muito importante que a marca conseguisse desde o início comunicar os seus valores e a sua história e isso só era possível através dos nossos próprios espaços.

E o que meteram dentro das lojas?

No início eram muito clean tínhamos poucos produtos, contávamos mais a história. Depois desafiámos designers a criarem produtos que fossem fáceis de vender. Começámos a desenvolver os segmentos das mantas, grande aposta do José Luís, o diretor da fábrica. E usamos o burel na decoração na reabertura do hotel das Penhas Douradas e nas próprias lojas.

Por que é que investiram logo na exportação?

Quando estamos a falar em produtos de muito valor acrescentado, que produzimos para o nicho de um nicho, não podemos estar só num mercado interno tão estreito como o nosso.

Por que é que começaram pelo Japão? 

O que funciona no Japão funciona em todo o mundo. É um mercado muito exigente que nos obriga a evoluir em todos os aspectos. Temos de ter garras para estar nesse mercado, repensar permanentemente os nossos produtos, clientes e negócios e isso faz-nos adultos à força. Durante muitos anos, o Japão foi o nosso principal mercado, só muito recentemente foi ultrapassado pelo Canadá.

Todos os vossos produtos são 100% made in Portugal?

Tudo quanto leva a marca Burel Factory é integralmente feito em Portugal, do fio à confeção, usando lãs provenientes de ovelhas bordaleiras (burel) e Merino (mantas) portuguesas, recorrendo a métodos tradicionais e a um parque industrial antigo que recuperámos.

Produzem tudo indoor?

Só não temos a tinturaria, ultimação e acabamentos, que subcontratamos a empresas da Serra da Estrela, nomeadamente à Alçada & Pereira. Tudo o resto é feito na fábrica.

Encaram a hipótese de verticalizaram mais a vossa produção?

Não, a não ser que não tenhamos solução. Focamos a energia na inovação e criatividade. Temos parceiros na região com quem gostamos de trabalhar e com quem pretendemos continuar a desenvolver novos projetos. Neste sector, na região da Serra da Estrela, devíamos ajudar mais uns aos outros. Sabemos que cresceremos mais e seremos melhores, quanto mais os nossos parceiros crescerem e forem melhores.

Serem sempre melhores é o objetivo?

O objetivo de fazermos cada vez mais bonito e único é que nos faz crescer e desenvolver. Por isso é que gostamos tanto de trabalhar na arte. Quanto mais perto o nosso negócio estiver da arte, mais belos nos sentimos e nos tornamos. Até como pessoas. Aproximamo-nos de Deus – porque a beleza aproxima-nos de Deus.

Estar no interior é uma desvantagem competitiva?

Uma enorme desvantagem competitiva. A maior das injustiças é tratar todos por igual. Não podemos competir de igual com as empresas que estão no litoral ou nas grandes cidades. As portagens, a distribuição, a comercialização,… tudo é muito mais caro. A UPS só vem a Manteigas duas vezes por semana. Para o Interior não desaparecer tem de haver uma enorme discriminação positiva.

O que sugere?

Para começar, uma diferenciação positiva em termos de carga fiscal. E depois uma muito maior flexibilidade nas modalidades de apoio à formação e ao investimento, sobretudo quando em causa está a recuperação de empresas e de património relevante no Interior.

Qual é o problema na formação?

Os nossos encargos com pessoal são o dobro dos normais, porque temos sempre um antigo a ensinar um novo. O mestre não ensina o aprendiz numa sala de aula. É trabalhando lado a lado com ele durante anos. Ora isso não consta dos manuais do IEFP.

Compensa o esforço que está a fazer na área da formação?

Não podemos deixar de nos sentir recompensados quando o MIT nos pede para recebermos um seu doutorando, a Universidade de Berlim nos envia dois alunos de doutoramento e diversas escolas de Artes Plásticas nos solicitam estágios profissionais. É muito importante manter a nossa memória industrial viva para estes miúdos jovens, e estarmos abertos a tudo aquilo que eles nos ensinam e às suas perguntas e provocações.

Como é a vossa relação com a UBI?

Colaboramos em duas cadeiras, do mestrado em Design Industrial e no curso de Design de Marketing. Participamos em algumas aulas, recebemos visitas, cedemos materiais, acompanhamos projetos e lançamos as peças em cobranding.

Já estão em velocidade cruzeiro?

Atingimos o break even em 2016. Mas não parámos nunca de investir em crescimento orgânico, na internacionalização e inovação.

Em que segmento estão a crescer mais? Moda e acessórios, tecido e mantas ou decoração/arquitetura?

Estamos com crescimentos semelhantes nesses três segmentos, que, no entanto, têm pesos diferentes. A arquitetura é a área mais inovadora e em que temos investido mais, o que nos levou a abrir uma loja especializada.

E nos tecidos?

Ao contrário da decoração, trata-se de um segmento sazonal e muito competitivo. Trabalhamos o baú da Império e da Sotave, produzindo uma gama de tecidos muito diversa, como o tweed, Príncipe de Gales, flanela, pied de poule, ou melton, entre outros… Os tecidos que mais vendemos, para além do burel, são as flanelas cardadas.

Qual é a estratégia para este segmento?

Não é uma área estratégica. Somos pequenos operadores, produzimos pequenas quantidades. Produzimos com teares de lançadeira e os nossos clientes têm de valorizar a qualidade destes tecidos bem como a sua história. Estamos a aprender e essa é a nossa estratégia para os próximos tempos – aprender.

Mais planos para o futuro?

A nossa principal ambição é continuarmos a desenvolver este património, de maneira a que equipamentos e conhecimento se perpetuem e sejam transferidos para as gerações vindouras. Queremos comprar mais máquinas e dar-lhes vida. Estou convencida de que o vale do desespero já passou e que estamos a subir a montanha, a caminho do pico.

Está feliz com os resultados do vosso esforço?

Em 2018 crescemos a dois dígitos em todas as vertentes – valor, volume de negócios e exportação e isso é um reconhecimento de estamos a fazer bem. Mas ficamos felizes quando sabemos que alguém da equipa vai ter um filho, que Manteigas vai ter mais uma criança… Dar vida é isso mesmo – dar vida em todos os sentidos! E isso faz-nos muito felizes.

Perfil

52 anos, nasceu em Ruivães, no Gerês, bem na fronteira entre o Minho e Trás os Montes. Cresceu em Braga e licenciou-se no Porto, em Engenharia Alimentar na Escola Superior de Biotecnologia da Católica. O seu primeiro e único emprego, durante 20 anos, foi na Modelo Continente, onde chegou a administradora. Casada com um jurista (João Tomás), têm dois filhos, João, 17 anos, que tenciona seguir Direito, e Maria da Estrela, 16 anos, que passou para 11º ano, ambos excelentes alunos

As perguntas de
Paulo Vaz
Diretor Geral da ATP

Como vê a Burel dentro de dez anos?

Daqui a dez anos a Burel Factory será seguramente uma nova Burel. Vamos descobrir novos caminhos, continuar a reinventar a empresa e os nossos produtos, fazer coisas diferentes, criar novas soluções e estar em mais mercados. O nosso modo é a inovação permanente.

O vosso projeto é replicável noutras áreas de negócio e regiões do país?

São replicáveis todos os modelos de desenvolvimento que assentem no aproveitamento dos recursos endógenos e em dar uma nova vida às atividades tradicionais, impedindo a morte de um conhecimento acumulado durante gerações a fio. Mas é indispensável compreender que se tem de nascer pequeno e depois ir crescendo de forma sustentável. Small is beautiful. O pequeno tem por vezes um valor superior ao grande. Um país pequeno com uma alma grande, como Portugal, encerra em si uma imensidão de pequenos negócios com potencialidades idênticas ao nosso.

Rui Miguel
Presidente do Departamento de Ciência e Tecnologia Têxteis da UBI

Em que pilares tem assentado a sua estratégia, nomeadamente ao nível dos mercados e do design?

Apostamos em nichos, na exportação para mercados que valorizam o nosso produto, bem como no estabelecimento de parcerias com designers de áreas muito diversas.

O storytelling associado à sua marca, para além da ancestral utilização do burel, contempla também as artes e ofícios tradicionais. Quais são as que ainda incorpora nos seus produtos?

Temos sido capazes de manter e passar aos mais novos todos os processos tradicionais desde a cardação, fiação, urdissagem até à tecelagem. A maior das dificuldades tem sido sem dúvida – o tempo. Para assegurar a perenidade de mão de obra especializada, temos de trabalhar em contra-relógio. Na área das peças bordadas à mão temos uma equipa de costureiras que aportam todo o seu conhecimento, tradição e valor na produção dos pontos tridimensionais que produzimos em grande e pequena escala. São verdadeiras peças de arte. A área da arquitetura está totalmente suportada por esta artesania, que lhe dá o valor que tem.

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