T28 Janeiro 2018

Faz sentido continuar a colar desfiles às estações do ano?

O calendário litúrgico da moda inventado na segunda metade do século XIX sobreviveu ao século XX mas está a ser alegremente destruído neste frenético século XXI. Minissaias, óculos de sol e flores exóticas no Inverno, calças e casacos pretos no Verão. Desfiles mistos. Coleções cápsula. O see now buy now a aplacar a fome de novidades - e já! - dos consumidores, aguçada pela vertigem das redes sociais .“Tudo muda a uma velocidade galopante e a moda está no topo da lista”, sintetiza Paulo Faria. A sazonalidade está moribunda. O que está agora na moda é o trans-sazonal

Raposo Antunes

O paradigma que estabelece a relação entre a apresentação das colecções de moda e as estações do ano começa a suscitar as maiores dúvidas junto dos diferentes players da moda, sobretudo no universo dos criadores, das marcas e dos próprios fabricantes.

Tradicionalmente, as coleções são apresentadas no ano anterior ao que se destinam, fossem elas de Outono/Inverno ou Primavera/Verão. Este conceito “de colecção de moda com lançamentos sazonais associado à Alta Costura e aos desfiles” é atribuído a Charles Frederick Worth (inglês que se fixou profissionalmente em Paris na segunda metade do séc. XIX), segundo Dolores Gouveia, especialista em tendências, design e marketing de Moda.

Ora, segundo Dolores,  “a moda tem na sua génese a mudança e a nossa realidade global e digital acelera esta dinâmica”. Daí que, “os agentes da moda têm vindo a reflectir sobre o sistema de moda e seus princípios”. “Alguns deles começaram a alterar as suas práticas, apresentando sinais de que a tendência é para que a moda evolua para uma Nova Ordem”, diz.

“Não é por acaso que marcas como a Burberry, Paul Smith ou Vetements optaram em 2016 por apresentar as colecções de homem e senhora num mesmo desfile, seguindo um único calendário e não por dois desfiles dedicados a cada um dos segmentos em semanas de moda com calendários diversos”, exemplifica. Razões dessa mudança? “O conceito/inspiração para ambas as colecções são o mesmo, verifica-se um esbater das diferenças de género na moda, economicamente esta abordagem beneficia as marcas (menor custo com as produções dos desfiles)”.

De resto, a Burberry e Tom Ford, decidiram colocar as suas peças à venda imediatamente após a realização dos desfiles. “Afinal não faz sentido criar desejo nas pessoas e não ter o produto disponível…”

Esse é também o entendimento de Luís Buchinho. Este criador considera que deve continuar a existir uma relação entre as colecções e as estações do ano, mas com um timing mais próximo. “Por exemplo, as colecções Primavera/Verão devem ser apresentadas em Janeiro do próprio ano e entregues nas lojas a partir de Março. As de Outono/Inverno devem ser apresentadas em Julho e entregues para venda em Outubro”, defende. E aponta várias razões para este novo calendário, desde as mudanças climatéricas ao facto de o público (clientes) passar a ter “uma memória mais fresca” sobre aquilo que foi apresentado.

Luís Buchinho
“Com as redes sociais, somos bombardeados com informações sobre as colecções”
“Hoje, com as redes sociais, somos constantemente bombardeados com informações sobre as colecções. De tal forma que essa informação se vai perdendo, tanto mais que os clientes esperam depois demasiado tempo para as poder adquirir”, considera.

“Com um mundo cada vez mais global e a necessidade de nos movermos quase diariamente de um lado para o outro, a moda começa a ter outro tipo de exigências. Na realidade, hoje quando se pensa numa coleção, não nos guiamos tanto pela estação na qual será apresentada, mas mais pelas necessidades que essa coleção possa vir a colmatar”, adianta, por seu turno, a estilista Elsa Barreto.

Indo ao encontro das questões levantadas pelo clima, esta criadora diz mesmo que “as coleções de hoje são muito mais ecléticas, muito mais abrangentes e não têm exigências próprias do frio, do calor ou das meias estações que, aliás, com as alterações climáticas a que temos assistido são cada vez menos acentuadas”.

Ressalva, porém, “as peças que são obrigatórias em cada uma das estações, nomeadamente, no inverno, onde se destacam, por exemplo, os casacos mais quentes, mas já não se pensa tanto em coleções que casem rigorosamente com a estação na qual surgem”.

Elsa Barreto considera assim que “o grande desafio atual é a combinação entre diferentes texturas e tecidos que possam ser usados ao longo de todo o ano e isso até torna mais interessante o ato de vestir”.

Gabriela Folhadela de Melo, diretora de Criação e Design da Somelos Tecidos, considera a pergunta pertinente, “dado que hoje em dia a moda é muito exigente e os consumidores querem ter acesso a novidades constantes”.

Na sua perspectiva, “as colecções com estações fazem todo o sentido para um planeamento laboral e financeiro de uma empresa, embora se tenha que ter cada vez mais cuidado com o critério de oferta”. E acrescenta: “Não podemos deixar de lado as exigências do mercado de verão e de inverno, a selecção das matérias primas, as cores, texturas e acabamentos”. Mas, sublinha, “temos consciência que os mercados pedem ‘drops de novidades’ entre estações, e é preciso estarmos atentos a essa procura e manter a curiosidade por parte dos nossos clientes até à tão esperada apresentação da colecção”.

Gabriela Melo
“Temos a consciência que os mercados pedem drops de novidade entre as estações”

Paulo Faria, director de vendas da Paula Borges, reforça a ideia da mudança, tanto mais que “tudo muda a uma velocidade galopante e a moda está no topo da lista – não faz sentido absolutamente nenhum a sazonalidade e actuar em espaços temporais alargados como são as estações, para apresentar os nossos produtos”. É imperativo assim “estar alerta para poder responder quase de imediato às exigências do mercado”.

“Os designers e marcas em Nova Iorque, Londres, Milão e Paris, nos últimos anos mostraram nas coleções de inverno flores exóticas, mini saias e óculos de sol, enquanto nas colecções de verão apresentaram casacos, calças e muito preto, uma cor muito digna de inverno. Digamos que isto faz parte de uma tendência maior para uma espécie de estilo sem estação”, descreve António Cunha, director de vendas da Orfama.

O novo modelo, segundo Cunha, “passa por fornecer aos consumidores uma nova maneira de descobrir mais das marcas que conhecem e amam”.  E lembra que “várias marcas já realizam dois shows anuais sem estação e see now buy now, disponibilizando as coleções imediatamente online e nas lojas”.

Tal como Buchinho, também António Cunha realça o papel das redes sociais: “Ao trabalhar com os influenciadores das redes sociais, as marcas e a indústria também podem tirar proveito de oportunidades de marketing significativas. Os clientes encontram cada vez mais marcas que querem comprar através das redes sociais e do zumbido social de amigos ou influenciadores online”.

Poderá isto significar o fim dos desfiles de moda sazonal? “Provavelmente não, mas a sua função irá com certeza evoluir. Em vez de vender roupas, a passarela vai ser uma exposição. O show vai incidir mais sobre a imagem da marca, e as pré-coleções vão servir para manter o impulso da compra. Essas peças precisam ser trans-sazonais”.

Dolores Gouveia não tem dúvidas. “De facto, colecções trans-sazonais fazem todo o sentido. Os produtos, as colecções, as marcas de moda são produzidos, divulgados e consumidos all over the world”.

Como será então no futuro? “Neste mundo globalizado, convém ter um guarda-roupa versátil, independentemente da estação do ano. Acredito que a tendência é para evoluir para o lançamento de duas colecções anuais com carácter trans-sazonal”.

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