T19 Abril 2017

É difícil ser filha do patrão?

A ITV já não é mais um clube masculino. A presença activa de mulheres na indústria não está mais circunscrita às máquinas de costura ou aos gabinetes de design. Alargou-se a todas as profissões que a compõem, de alto a baixo, desde o posto de soldado raso até ao generalato. Ser mulher deixou de ser cadastro. Passou a ser curriculum. Ser filha do patrão deixou de ser um estigma. Passou a ser um sinal de esperança. Por detrás do milagre económico da ressurreição da têxtil não há uma só mulher - mas dezenas de milhares delas. E também uma revolução na cultura, mentalidade e costumes, no sentido da modernidade, que ajuda muito a explicar o sucesso.

Carolina Guimarães, Jorge Fiel e Raposo Antunes

São sete histórias de mulheres que ocupam postos de comando em fábricas dos diversos sectores que integram a nossa indústria. São sete histórias diferentes, mas com um denominador comum. O milagre que permitiu à ITV sobreviver e prosperar – apesar da banca lhe ter administrado a extrema unção e de sucessivos governos lhe terem passado a certidão de óbito – não foi só económico. O investimento em modernização e reconversão foi a par de uma fantástica revolução na cultura e mentalidades. Para mandar numa fábrica, ser mulher deixou de ser cadastro para passar a ser curriculum. E ser filha do patrão não é mais um estigma. Até começa a ser um sintoma de mérito – e a não implicar a pergunta “Como é o marido?’”. A igualdade dos géneros começa a ser uma feliz realidade na indústria têxtil e de vestuário portuguesa.

A educação de Rita. “Nunca me senti diminuída por ser a única mulher numa reunião de trabalho. Nunca vivi qualquer tipo de situação em que experimentasse o mínimo desconforto. Nunca senti problemas por ser a filha do patrão”, resume Rita Fernandes, 37 anos, administradora do grupo Mundifios. Filha mais velha do fundador da maior trading ibérica de fios, Rita partilha com o irmão mais novo (Joaquim, tal como o pai) a gestão de um poderoso grupo familiar nascido no comércio dos fios e que tem investido a montante da produção. “O que interessa é o método e o rigor. Se tivermos mérito e formos competentes e dedicados, seremos reconhecidos e respeitados, independentemente do nosso sexo, idade ou de quem somos filhos”, afirma Rita, que sonhou ser advogada e foi professora de Português e Inglês antes de reconhecer que o seu futuro passava pelos fios. Rita não esconde que “ser filha do patrão acarreta mais responsabilidades”, mas estava preparada para isso. “O meu pai é um pessoa paciente, bom comunicador, muito inteligente e um empresário bem sucedido, que soube educar-nos muito bem. Ensinou-nos a sermos humildes, a lutar pelas coisas, a dar a toda a gente as mesmas oportunidades. A educação é a maior das riquezas que recebemos”.

Joana, filha da patroa. “Não só não é difícil, como até tem os seus benefícios. Não tem de se ir ao mercado de trabalho”, graceja Joana Marinho, 29 anos, directora geral da F Moda, empresa fundada pela mãe, Fernanda Oliveira – ou seja não é filha do patrão, mas da patroa… Cresceu no meio dos trapos. “Era bebé de duas semanas e já ia com a minha mãe para a empresa. E, adolescente, passava os verões no meio das embalagens”, recorda Joana, que ao ver quão stressante era o negócio têxtil ainda tentou escapar-lhe, iniciando em Paredes estudos de Farmácia, que acabou por interromper para ir ajudar a mãe. Debutou com o salário mínimo, foi aprendendo (“Mandar sem saber fazer não é mandar direito, ensinou-me a minha mãe”), ocupou-se da gestão comercial e de clientes e agora é a directora-geral.  “Ser filha da patroa implica corresponder a exigências e expectativas muito altas.

Sete
Sete histórias de mulheres que ocupam postos de comando em fábricas dos diversos sectores da ITV.
Mas o nível acrescido de exigência é bom porque ajuda a crescer”, explica Joana. Mas reconhece que ser mulher ainda comporta limitações a nível social: “Um homem tem uma relação bem mais fácil com um cliente do mesmo sexo. Pode convidá-lo a beber um copo ou para irem juntos ao futebol, sem que surjam qualquer espécie de mal-entendidos”.

Fernanda, a aluna atenta. Há 16 anos que Fernanda Valente comanda a empresa criada pelo pai, Fernando, em finais dos anos 70. Apesar da sintonia entre pai e filha ser grande, admite que “as expectativas dele em relação a mim eram baixas, porque esperava que fosse um dos meus irmãos a continuar com a empresa”. As baixas expectativas deram-lhe uma enorme margem e capacidade para brilhar. “Aprendi com todos: os mestres, os técnicos…com o meu pai. Andava ali como se fosse uma esponja, aprendi imenso”. E o facto de ser mulher não a atrapalhou: “Aprendi cedo a fazer tudo o que era trabalho masculino”. Passada a questão das expectativas, a relação de simbiose entre pai e filha foi-se estreitando ao longo dos anos, independentemente da diferença de gerações. “Ele ouvia-me – e o facto de me ouvir mostra que ele não era tão velho quanto isso. O meu pai foi jovem até morrer”. “Tenho vários projectos em carteira, mas onde quer que eles sejam e para onde quer que eu vá, terei sempre muito orgulho em afirmar que fui a filha do patrão Fernando Valente”, conclui.

Fátima é prata da casa. “Desde que comecei a trabalhar aqui sempre fui muito bem aceite e acolhida. Não acho que o facto de ser mulher me tenha algum dia prejudicado – pelo contrário!”, garante Fátima Sousa, 62 anos, administradora da Domingos Sousa e a mais velha dos seis filhos (quatro raparigas e dois rapazes) do fundador desta têxtil-lar. Dentro da fábrica que gere, Fátima sente-se como fazendo parte da prata da casa, após os sete anos que se habituou a dar uma mãozinha na empresa. “Sempre cá estive!”, responde quando questionada sobre se sentiu algum atrito aquando da sua entrada para a administração. O pai ainda é vivo e continua a ser presença assídua na empresa (“Quando chego às 8h30 o carro dele já está estacionado”), por isso a passagem de testemunho para Fátima é feita de forma gradual e sem grandes solavancos. A fábrica de atoalhados é, literalmente, uma fábrica familiar onde trabalham todos os filhos de Domingos (mais uma nora, um genro e quatro netos dele). “Damo-nos todos muito bem!”, assegura Fátima.

Comandante Carla. “Penso que o meu pai estava à espera de um homem para lhe suceder. Como não teve filhos rapazes, talvez pensasse que fosse um dos nossos maridos. Fiquei eu!”, afirma Carla Pimenta, que há três anos lidera a Têxtil do Serzedelo (Texser). Fundada em 1932 por José de Abreu Pimenta, avô de Carla, a Texser passou depois para o seu pai, Abílio, que teve três filhas – as duas mais novas, Maria João e Maria Paula, ocupam-se da componente agrícola do negócio da família.

Igualdade
A igualdade dos géneros começa a ser uma feliz realidade na indústria têxtil e de vestuário portuguesa.
“Na geração do meu pai, não era culturalmente aceitável ver uma mulher à frente de uma fábrica. Mas os tempos mudaram, as mentalidades também, e o meu pai soube acompanhar essa evolução. Agora até está sempre a incentivar-me”, conta Carla.  Agora com 78 anos, o pai ainda continua a frequentar a fábrica. O truque para evitar choques é trabalharem em conjunto. Com mais idade e experiência, é natural que ele imponha mais respeito. Mas ela acha isso natural. “ O importante é que nunca senti qualquer discriminação de género. E toda a gente, clientes, fornecedores e trabalhadores, foram-se habituando a ver uma mulher no posto de comando”.

Ana Paula, a conquistadora. “Os cargos de chefia exigem às mulheres um esforço adicional por causa do tempo que é necessário dedicar à família”, afirma Ana Paula Rafael, 55 anos, CEO da Dielmar. No início da carreira profissional, quando era dirigente do NERCAB, Ana Paula sentiu reservas pelo facto de ser mulher – que atribui a uma época em que o mais natural era serem os homens a tomar decisões. “Considerava-se que a mulher não estava preparada para ter cargos de liderança”. No seu caso, essas resistências foram rapidamente ultrapassadas talvez pela sua atitude, aquela espécie de dom natural, normalmente definido por liderança inata. “O espaço é uma coisa que se conquista”, avisa! Na Dielmar, que dirige há nove anos nunca sentiu a mínima resistência dos trabalhadores – “Temos uma boa relação profissional, muitas delas foram minhas colegas de escola” – diz, nem o “ferrete” de ser filha do patrão. “Nunca tive esse problema. Já tinha a minha carreira fora da empresa. Eu comporto-me como uma profissional em qualquer sítio e seja com quem for, mesmo na fábrica onde o meu pai esteve”, sublinha.

A menina Sandra. No princípio, quando aos 34 anos começou a assumir funções executivas na Custoitex, era normal que nos primeiros contactos com fornecedores ou clientes fosse acompanhada por funcionários mais velhos, que respeitosamente eram tratados por “senhor doutor” – enquanto a ela se dirigiam com um carinhoso “menina”. Licenciada em Marketing (IPAM) e com um MBA em Gestão (EGP), Sandra Morais, 43 anos, desdramatiza esse tratamento por “menina”, explicando-o pela forma informal com que se continua a apresentar nas reuniões de negócios.  “Não identifico nada na minha condição de mulher e filha do patrão que constitua um problema para os negócios. Nunca senti qualquer reserva por parte dos funcionários e funcionárias da Custoitex. O processo de sucessão do meu pai foi natural e decorreu sem sobressaltos”, afirma, levantando um pequeno e último senão: “Desde que a minha irmã se dedicou à Custoitex somos duas mulheres na frente de combate. Nalguns casos, nomeadamente em feiras no estrangeiro, sinto que a presença de um homem seria importante”.

 

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