Gabriela Melo
“não nos resignámos a trabalhar a feitio”
T25 Outubro 2017

Carolina Guimarães e Jorge Fiel

“Nasci numa família têxtil, casei com uma família têxtil, vou morrer na têxtil. Não sei fazer mais nada”... é uma forma extremamente simples de resumir Gabriela Melo, de 53 anos e Diretora de Criação e Design da Somelos Tecidos.

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emos de criar condições para que os trabalhadores se sintam em casa na fábrica – afirma Gabriela Melo, a diretora de Criação e Design da Somelos Tecidos, que não tem a mínima dúvida sobre a excelência das coleções que apresenta: “Os nossos desenhos, a nossa moda, são uma referência obrigatória nas feiras”.

Não é desgastante trabalhar há quase 30 anos com o marido na mesma empresa?
A Somelos é enorme! Tem uma área de 200 mil metros quadrados. Eu e o Paulo saímos de casa de manhã cedo e, regra geral, só nos voltamos a encontrar à noite. Temos responsabilidades completamente diferentes. Se fosse de outra maneira se calhar já não estávamos casados (risos).

Desde Janeiro de 88 que está no departamento criativo da Somelos Tecidos. Não é monótono estar sempre a fazer a mesma coisa?
Fazer coleções num departamento criativo é exatamente o oposto de um trabalho monótono. Mas não tenho estado sempre a trabalhar aqui. Durante uma dúzia de anos ocupei-me da parte social – o Centro de Solidariedade Social, Cultural e Desportivo (CSSCD) da Somelos – e da renovação da imagem corporativa do grupo.

Desafios interessantes?
Temos de criar condições para que os trabalhadores se sintam em casa na fábrica. Além de subsidiar os estudos dos filhos, do 10o ano e até ao fim do curso, o CSSCD dá descontos na farmácia, dentista, médico, ginásio, óticas, etc. E tem um infantário, com 42 anos, aqui na empresa, agora uma IPSS com 163 crianças e diversas atividades – inglês, informática, música, passeios – gratuitas.

Como surgiu a necessidade de mudar a imagem corporativa do grupo?
Nos anos 90, o grupo sofreu uma grande reestruturação, com a criação de uma SGPS e a autonomização das áreas de negócio – fiação, tecelagem, acabamentos e tinturaria, serviços, imobiliária, etc. A esta reorganização interna correspondeu um movimento de subida na cadeia de valor. A nova mentalidade tinha de ser refletida na imagem externa da Somelos.

Gabriela Melo
"Quando coexistem visões estratégicas diferentes é fundamental haver uma clarificação"

Em que consistia essa nova mentalidade?
A fiação voltou-se para os fios especiais, em detrimento das grandes produções. Nos tecidos, fomos os primeiros a desenvolver coleções e a impôr a nossa marca. Não nos resignamos a trabalhar a feitio. A nova imagem tinha de refletir este novo estádio da vida do grupo. Mudamos tudo, desde o lettering ao logo, para transmitir ao mercado a modernização da Somelos.

Essa revolução nos anos 90 foi crucial para o futuro do grupo?
Sem dúvida. Houve, na altura, por parte da liderança do grupo, uma visão estratégica muito apurada. Contratamos um designer italiano para nos ensinar a trabalhar. Aprendemos e as coleções da Somelos Tecidos tornaram-se uma referência a nível mundial. Os nossos desenhos, a nossa moda, são uma referência obrigatória nas feiras internacionais.

Quer dizer que no início do século XXI já estavam preparados para enfrentar a feroz concorrência asiática?
Quando virou o século, já tínhamos um rumo definido, um departamento criativo experiente e fazíamos as nossas coleções. Claro que tivemos de nos ajustar a uma nova realidade, em que as grandes metragens para grandes clientes, como a Burberrys ou Marks & Spencer, foram sendo progressivamente substituídas por encomendas mais pequenas e clientes mais exigentes, a pedirem artigos diferentes.

"As coleções da Somelos Tecidos tornaram-se uma referência a nível mundial"

A Somelos não abanou com a abertura da OMC?
Os asiáticos não eram nem são nossos concorrentes. Como já referi tivemos que nos ajustar. Não vendemos o mesmo que eles. Quer nos fios, quer nos tecidos, já estávamos focalizados e posicionados no segmento médio/alto. As nossas coleções são do melhor que se faz na Europa em termos de moda. Nós vendemos inovação, moda, criatividade e serviço.

Os asiáticos não são vossos concorrentes?
Não. Não vendemos o mesmo que eles. Os asiáticos são aliás nossos clientes – são clientes porque gostam de comprar do melhor que existe. Olhamos para a Ásia – Japão, Coreia do Sul, mas também a China – como mercados de oportunidade para a Somelos. Aliás foi com convicção que abrimos um escritório em Hong Kong há oito anos.

O segredo foi ter feito o trabalho de casa, preparando-se atempadamente para a abertura de mercados?
Sim, mais o serviço. Não só apresentamos uma coleção criativa e comercialmente boa, como garantimos também um esplêndido serviço. Não serve de nada termos uma coleção fantástica se o serviço pecar e não entregarmos o tecido ao cliente quando e como ele quer.

O serviço é que faz a diferença?
Nas feiras apresentamos sempre as nossas propostas em tecido e não em papel. Quer um exemplo do que é serviço? Em Julho estivemos na Milano Unica. E no início de Setembro na Munich Fabric Start. Desde então para cá (meados Setembro) já mandamos 52 mil cartazes aos clientes que nos contactaram em Milão e Munique. Isso é que é serviço ao cliente.

Nasceu numa família têxtil, casou com outra. As empresas familiares têm mais vantagens ou desvantagens?
É mais fácil confiar numa pessoa de família do que num estranho. E pelo menos à partida, uma pessoa da família com boa formação dá mais garantias de honrar o legado que recebeu da geração anterior.

E as desvantagens?
Os problemas são mais fáceis de resolver se estiverem definidas regras bem claras que ponham o profissionalismo à frente dos laços de sangue.

Como por exemplo…
Que o apelido não deve ser garantia de emprego ou de poder chegar à fábrica ao meio dia. Que só vale a pena irmos trabalhar na empresa da família se for mesmo para trabalhar, se tivermos vontade e mérito, ou seja, se for para sermos profissionais. Foi assim que fui educada.

Era esse o catecismo lá em casa?
Honrar o nome da família, passar as coisas de geração em geração, dando continuidade ao trabalho dos nossos pais e avós, orgulharmo-nos de criar emprego e respeitar o dinheiro dos outros foram os valores que o meu avô Manel me ensinou.

Há muitas empresas familiares que não sobrevivem à terceira geração, quando se eleva às dezenas o número de primos, irmãos, sobrinhos, cunhados, etc…
As empresas sobrevivem e prosperam, contanto que os seus acionistas tenham bom senso e percebam que nem toda a gente nasce com vocação para liderar empresas.

Nestes casos, o que é ter bom senso?
Quando coexistem visões estratégicas diferentes é fundamental não adiar as coisas e haver uma clarificação, para que a empresa possa ter um rumo. Quando um ramo acionista não acredita no futuro do setor o melhor que tem a fazer é vender e entregar a condução do negócio a quem tenha uma estratégia clara, consensual e visão de futuro.

Acredita no futuro do setor?
Claro que acredito. Foi a vender trapos – não iPhones, aplicações ou automóveis – que o Amancio Ortega se tornou um dos três homens mais ricos do mundo. E olhe que ele não tem parado de subir na lista. :-).

Não estou a falar do setor em geral, mas da ITV portuguesa?
Nós, em Portugal, na indústria têxtil e de vestuário, somos muito, mas mesmo muito bons. Acumulamos um excelente know-how e por isso fazemos muito bem. Somos dos melhores do mundo!

Não está a ser demasiado otimista?
Não. Basta olhar à nossa volta. Num raio de 30 quilómetros, encontra uma variedade de empresas de diversos subsetores da ITV que produzem com uma qualidade ímpar. Não há nenhum sítio do mundo que se compare a este.

Não há pontos fracos?
Há sempre coisas para melhorar. Temos evoluído muito no design e na criatividade, mas ainda há espaço para progredir até atingirmos o patamar de excelência.

Criatividade e design são o nosso único calcanhar de Aquiles?
Nós somos muito bons a descobrir e a produzir, mas ainda não tão bons na parte comercial – e essa deficiência não é exclusiva da têxtil, aplica-se a outros setores de atividade em Portugal. Temos que aprender a saber vender o que é português.

O Made in Portugal já é um trunfo?
O mundo olha para nós com respeito. Já temos uma boa imagem global de marca como país de moda. Mas não podemos parar. Temos de estar sempre a melhorar. O mercado muda cada vez com maior rapidez. O que hoje é novidade, amanhã já pode estar fora de moda. Nós temos de estar sempre atentos para nos ajustarmos e acompanhar este ritmo frenético.

O que está a mudar na moda?
Tudo. Dantes, as lantejoulas eram apenas usadas à noite. Agora é durante o dia. Usa-se tudo. Tudo é permitido. Quanto mais imaginação houver, melhor.

É fácil recrutar especialistas em design e marketing?
Foram dados passos importantes no ensino dessas áreas e felizmente temos em Portugal boas escolas de Design e de Marketing, o que facilitou imenso a contratação de bons técnicos. Já não posso dizer o mesmo de tecelões ou debuxadores…

Porquê?
Houve uma geração inteira que não quis ir para a escola aprender profissões têxteis porque lhe disseram que o setor não tinha futuro. Agora estamos a sofrer as consequências disso. Hoje em dia, um bom tecelão, já formado, vale muito dinheiro.

Como resolvem o assunto?
Formamo-los internamente. Na Somelos, investimos sempre muito nos recursos humanos e na sua formação. E trabalhamos muito na base da partilha de conhecimentos entre as diferentes áreas. Trabalhamos em partilha.

O que é trabalhar em partilha?
No departamento criativo temos de fazer coisas lindíssimas, fantásticas e com muito bom gosto. Uma coleção de moda que seja muito bonita, mas também que seja comercial, pois temos de a vender, e ainda antes disso que a sua produção seja exequível. Para que tudo isto aconteça, criativos, comerciais, debuxadores e tecelões têm de trabalhar em sistema de partilha.

Como é que se conseguem fidelizar os clientes?
Cumprir os prazos de entrega é fundamental. Se falhamos a entrega, todo o processo falha em cadeia. Na Somelos Tecidos temos uma noção muito precisa da importância do timing, não só na entrega, mas também a montante. Quero que o meu cartaz de amostras seja o primeiro a chegar ao cliente. Quero ser o Trendsetter deles.

Não perderam clientes com a globalização?
Alguns, não muitos. Uns foram até à Turquia outros à Roménia. Outros clientes tiveram experiências más e voltaram.

É mais difícil estar no negócio agora do que há cinco ou dez anos atrás?
É muito diferente. O mercado está muito mais concorrencial. Os clientes encomendam metragens cada vez mais curtas e estão cada vez mais exigentes.

O preço continua a ser o fator decisivo?
Há três fatores a ter em atenção quando preparamos uma coleção: o design, a qualidade e o preço. O serviço também é fundamental, mas mesmo no segmento alto temos de ter em conta o fator preço.

Como vê a ITV portuguesa daqui a dez anos?
De boa saúde :-). Estamos bem posicionados. É só manter este ritmo, não sermos tímidos e termos orgulho no que fazemos e estarmos na linha da frente!

E a Somelos?
Ainda vai estar melhor. Nós não somos bons. Somos muito bons! Sei que somos os melhores. E não digo isto por estar convencida. Somos excelentes a criar e produzir. Só temos que potencializar mais a nossa imagem, através de um marketing mais direcionado.

Perfil

53 anos, nasceu em Requião, Famalicão, sendo a irmã do meio dos cinco filhos do casamento de Maria Helena (a mais velha dos três filhos de Manuel Gonçalves) com Luiz Folhadela de Oliveira. Entre os dez e os 23 anos estudou em cinco países, quase sempre interna em colégios católicos. Após a primária, feita em Famalicão, começou no Colégio do Rosário o secundário que continuou entre Toronto e o Kent e concluiu em Lucerna. Licenciou-se em Engenharia Têxtil em Filadélfia. Casada com Paulo Melo, administrador do grupo Somelos e presidente da ATP, vivem em Guimarães e têm dois filhos: João Paulo, 26 anos, formado em Gestão e atualmente estagiário da TMG Automotive, e Manuel Pedro, 24, que está a finalizar Gestão na Católica.

Regressada ao Minho no verão de 1987, não demorou um ano a casar-se com Paulo. O casamento com o neto de António Teixeira de Melo (fundador da Somelos) deu início à carreira profissional da neta de Manuel Gonçalves (fundador da TMG) que ainda trabalhou um mês na TMG antes de, em Janeiro de 1988, debutar no departamento criativo da Somelos, com um salário de 38 contos (a têxtil nunca foi famosa pelos salários que paga…). “Nasci numa família têxtil, casei com uma família têxtil, vou morrer na têxtil. Não sei fazer mais nada”, graceja Gabriela, portista ferrenha (tal como o filho mais velho – o mais novo e marido são do Vitória) e uma grande desportista (já fez sete meias maratonas e corre todos os dias de manhã) desde os tempos do Canadá, onde foi campeã de Toronto em futebol e medalha de ouro nos 200 metros.

As perguntas de
Sandra Audisio
Agente Somelos Tecidos para Itália

Com a tendência do desenvolvimento do uso de tecidos técnicos e desportivos utilizados no mundo fashion, como prevê que seja possível desenvolver uma coleção da camisaria?
A Somelos está sempre atenta a novos desafios como o do wrinkle, easy care e easy iron, anti-transpiração, orgânicos, fair trade, bem como o uso de fibras, processos e acabamentos invulgares. O emprego de têxteis técnicos e matérias-primas especiais em camisaria também é uma realidade a que estamos muito atentos e que iremos incorporar nas próximas coleções.

O uso de fios de fantasia será uma tendência predominante da estação PV19. Que tipo de fios e que misturas está pensar usar na coleção?
As coleções têm de ter sempre um lado de inovação e de moda. Aí, a nossa aposta passa sempre por incorporar fios diversos tais como: moulinés, gandarelas; jaspés; bouclés etc. As misturas de fibras nobres e naturais continuarão com grande impacto.

Isabel Furtado
Irmã mais velha e administradora TMG Automotive

Temos um excelente setor têxtil com toda a fileira industrial. Temos design, temos bom serviço, rápido e flexível. No entanto falta-nos notoriedade no mundo da moda. Porquê?
É verdade. Nunca fomos um país que soubesse vender.Vivemos sob o estigma de país subcontratado com excelente qualidade e tempos de resposta – e nunca soubemos impôr a nossa moda. Mas estamos a evoluir e já vemos resultados surpreendentes. Estamos a capitalizar o trabalho desenvolvido neste sentido e somos muito procurados pela combinação de todos os fatores, design incluído.

Estudaste em cinco países, falas vários idiomas, viajas pelo mundo inteiro. No entanto optaste por viver a vida adulta sempre em Portugal. Isto aqui é mesmo melhor?
Portugal é um país fantástico com muitas oportunidades e uma excelente qualidade de vida. Ter optado por viver cá foi a decisão acertada, em termos profissionais e pessoais. Permitiu que a minha família crescesse com acesso a tudo, sobretudo a uma excelente educação e mantendo os valores que prezo. Somos uma família muito unida e divertida e não me imaginaria a viver longe dela.

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